Auditoria para a Dívida Pública Brasileira
Orçamento federal de 2013 destinará
Entrevista especial com Maria Lucia Fattorelli
“A dívida pública passa a crescer de forma descontrolada, levando
o governo a contingenciar o orçamento das áreas sociais”, diz a auditora fiscal.
Confira a entrevista:
Quase a metade do orçamento federal do próximo ano, exatos 42%, está destinada
ao pagamento da dívida pública brasileira. Dos 2,14 trilhões de reais, 900
bilhões serão gastos com o “pagamento de juros e amortizações da dívida
pública, enquanto estão previstos, por exemplo, 71,7 bilhões (3,35%) para
educação, 87,7 bilhões (4,1%) para a saúde, ou 5 bilhões (0,23%) para a reforma
agrária”, informa Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria
Cidadã, à IHU On-Line.
Em sua avaliação, o orçamento da União está repetindo a mesma prática
adotada há décadas, ou seja, “concede absoluta prioridade ao pagamento dos
juros e amortizações da dívida pública – interna e externa”. Os valores
destinados à dívida, ressalta, “nunca deixam de ser
gastos”. Entretanto, os “valores
designados para áreas sociais podem não ser totalmente
executados (...) sob a justificativa de garantir o cumprimento da chamada meta
de superávit primário, uma reserva orçamentária destinada exclusivamente ao
pagamento da dívida pública”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por
e-mail, Maria Lucia enfatiza que o pagamento da dívida “favorece uma
reduzida parcela de rentistas, que, à custa das restrições cada vez maiores aos
direitos sociais, têm registrado lucros recordes”. E dispara: “A dívida pública
se transformou em um mero instrumento do mercado financeiro. Em lugar de servir
como meio de obtenção de recursos para financiar o Estado e incrementar as
condições de vida de todos os brasileiros, tornou-se um mecanismo de subtração
de crescentes volumes de recursos públicos, inviabilizando a destinação de
verbas para áreas sociais e provocando a piora nas condições de vida da
sociedade em geral, enquanto favorece o setor financeiro”.
Maria Lucia Fattorelli é auditora fiscal e coordenadora
da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de
Auditoria Integral da Dívida Pública – CAIC no Equador em 2007-2008. Participou
ativamente nos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a dívida
realizada no Brasil. É autora de Auditoria Da Divida Externa. Questão De
Soberania (Contraponto Editora, 2003).
Confira a entrevista
IHU On-Line – Quais são as principais características da peça
orçamentária da União para o ano de 2013? Qual é o peso que a dívida pública
assume no conjunto do orçamento?
Maria Lucia Fattorelli – O Orçamento
Federal de 2013 é de 2,14 trilhões de reais e, repetindo a mesma prática
adotada há décadas, concede absoluta prioridade ao pagamento dos juros e amortizações
da dívida pública – interna e externa (dados no segundo
parágrafo, acima). Essa dívida jamais foi auditada, a despeito do que determina
o artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988.
Enquanto os valores destinados à dívida nunca deixam de ser gastos, os valores designados para áreas sociais podem
não ser totalmente executados, tendo em vista as desvinculações (Desvinculação
de Receita da União – DRU) e contingenciamentos que têm sido feitos
reiteradamente pelo poder Executivo sob a justificativa de garantir o cumprimento
da chamada meta de superávit primário, uma reserva orçamentária
destinada exclusivamente ao pagamento da dívida pública.
É importante mencionar que esse privilégio ao pagamento da dívida
favorece uma reduzida parcela de rentistas, que, à custa das restrições cada
vez maiores aos direitos sociais, têm registrado lucros recordes. Isso tem
ocorrido mesmo com as anunciadas reduções da taxa básica de juros (taxa Selic),
pois, pelo atual sistema de lançamento de títulos da dívida pública, apenas
doze bancos podem adquiri-los junto ao Tesouro
Nacional. Esses bancos, chamados de dealers,
somente compram títulos quando a taxa de juros oferecida atinge o patamar que
eles desejam. Com isso, apesar da queda da Selic, na prática continuamos a
pagar a maior taxa de juros do mundo, ou seja:
– enquanto o
governo alardeia a comemoração sobre a redução da Taxa Selic para 7,5% ao ano,
o custo médio efetivo da dívida pública federal está 11,3% ao ano (Tabela do
Tesouro Nacional – Quadro 4.1);
– justamente
quando a Selic passou a cair o Tesouro Nacional passou a vender os títulos
lastreados em taxas fixas bem superiores à Selic, o que demonstra o forte poder
dos bancos sobre a administração da dívida pública no Brasil;
– atualmente apenas uma parcela equivalente a 24,57% da dívida
mobiliária de responsabilidade do Tesouro Nacional está atrelada à Selic.
Instrumento do mercado financeiro.
A dívida pública se transformou em um mero
instrumento do mercado financeiro. Em lugar de servir como meio de
obtenção de recursos para financiar o Estado e incrementar as condições de vida
de todos os brasileiros, tornou-se um mecanismo de subtração de crescentes
volumes de recursos públicos, inviabilizando a destinação de verbas para áreas
sociais e provocando a piora nas condições de vida da sociedade em geral,
enquanto favorece o setor financeiro.
Além disso, existe um grave problema de contabilidade e transparência
em relação aos gastos com a dívida. Dos 900 bilhões de reais do orçamento/2013
reservados para o pagamento da dívida, o governo divulga que 608 bilhões se referem
ao chamado “refinanciamento” ou “rolagem”, anunciados como se fossem referentes
ao pagamento de amortizações (ou seja, ao principal) da dívida por meio da
emissão de novos títulos da dívida.
Segundo analistas conservadores, o valor classificado sob a rubrica
“refinanciamento” ou “rolagem” da dívida não deveria ser considerado como
gasto, pois representaria apenas o pagamento do principal da dívida por meio da
emissão de nova dívida (ou seja, uma mera troca de dívida velha por dívida
nova).
Juros indevidos
Na realidade, as investigações técnicas realizadas pela recente CPI da
Dívida Pública, realizada na Câmara dos Deputados 2009/2010, comprovaram que
grande parte dos juros pagos tem sido apropriada indevidamente como se fosse
refinanciamento ou rolagem. Isso tem acontecido devido ao fracionamento
indevido do montante dos juros nominais em duas partes: uma que corresponde à
atualização monetária calculada de acordo com o IGP-M e outra que excede essa
atualização, considerada como juros
reais. Uma vez que, pela contabilidade oficial, a rubrica pagamento
de juros contempla apenas os juros reais, ou seja, os juros que excedem a
atualização monetária medida pelo IGP-M, essa parcela dos juros nominais que
corresponde à atualização monetária tem sido considerada como se fosse
amortização ou rolagem.
Esse fracionamento dos juros e a classificação de grande parte deles como se
fossem amortizações têm gerado uma grave distorção, porque, de acordo com a
Constituição, despesas correntes – como é o caso dos juros nominais – não podem
ser pagas mediante emissão de dívida. O texto constitucional visou prevenir o
crescimento desenfreado da dívida decorrente da incidência de juros sobre
juros. A partir do momento em que se contabiliza a atualização monetária como
amortização ou refinanciamento, percebe-se uma clara burla a essa determinação
constitucional. A dívida pública passa a crescer de forma descontrolada,
levando o governo a contingenciar o orçamento das áreas sociais. Dessa forma,
dentro daqueles 608 bilhões de reais está incluída grande parte dos juros
nominais da dívida pública. É por isso que temos destinado quase a metade do
orçamento anualmente para o pagamento de juros e amortizações e a dívida não
para de crescer. No primeiro semestre de 2012, a dívida interna alcançou 2,74
trilhões de reais e a externa 416 bilhões de dólares.
IHU On-Line – Qual é a proporção de gastos no orçamento de 2013 entre
recursos para encargos da dívida e gastos com o programa Bolsa Família?
Maria Lucia Fattorelli – Como acima mencionado, para 2013 estão
previstos 900 bilhões de reais para o pagamento da dívida, ou seja, o que se
gasta em menos de nove dias com a dívida. Dessa forma, em nove dias de
pagamento da dívida supera-se o montante previsto para o ano inteiro para o
programa Bolsa Família.
Enquanto o programa Bolsa Família atende
cerca de 13,5 milhões de famílias, sabe-se que poucos bancos e instituições
financeiras nacionais e estrangeiras detêm a propriedade dos lucrativos títulos
da dívida brasileira – o “bolsa rico”. Note-se ainda
que o valor de 22 bilhões de reais é um teto previsto no orçamento que, a
depender da política de superávit primário do governo para o pagamento do
serviço da dívida, pode ser drasticamente contingenciado, como temos observado
em quase todas as áreas sociais no início de cada ano.
IHU On-Line – Houve uma grande luta pela incorporação de 10% do PIB para a
educação. Como vê o orçamento destinado para essa área?
Maria Lucia Fattorelli – Recentemente, a
Câmara dos Deputados aprovou o aumento dos atuais 5% do PIB para 10% do PIB
aplicados no setor educação. Porém, o texto aprovado indica que esse patamar
deve ser alcançado somente no ano de 2023. Ressalte-se que esta proposta ainda
precisa ser aprovada pelo Senado.
Em 2013, estão programados 71,7 bilhões de reais com gastos federais na
área da educação, o que representa 12 vezes menos do que o valor destinado à
dívida. Tal valor representa apenas 1,44% do PIB de 2013, ou seja, uma pequena
parcela dos almejados 10% do PIB.
É importante mencionar que estados e municípios são os maiores
responsáveis pelos gastos na área da educação. Considerando que além de suas
receitas tributárias próprias tais entes federados dependem dos repasses
efetuados pela União (tal obrigação decorre da concentração da arrecadação
tributária na esfera federal), é necessário observar que o orçamento
federal para 2013 reserva somente 9,3% dos recursos para transferências
a estados e municípios. Ou seja, 27 estados e mais de 5.000 municípios
receberão em 2013, a título de transferências federais, quatro vezes menos do
que o valor destinado à dívida.
A continuar o atual modelo orçamentário, é bastante difícil acreditar
que chegaremos à aplicação de 10% do PIB na educação, sendo necessária uma
alteração na política do endividamento para que esta grande e nobre bandeira
dos movimentos sociais brasileiros seja efetivada.
IHU On-Line – O governo argumenta que gastos maiores com o salário
mínimo são proibitivos em função da previdência. Qual será o peso no orçamento
do salário mínimo em 2013?
Maria Lucia Fattorelli – O valor
do salário mínimo fixado para 2013 (R$ 670,95) significa um aumento real de
apenas 2,7% em relação ao valor atual. Prosseguindo nesse ritmo, serão
necessários cerca de 50 anos para se atingir o salário mínimo calculado pelo
Dieese (de 2.383,28 reais), com base no disposto na Constituição Federal, art.
7º.
O eterno argumento oficial contra um aumento maior do salário mínimo é
que a Previdência Social não teria recursos suficientes para pagar as
aposentadorias do Regime Geral. Porém, tal argumento é falacioso e não se
sustenta em base aos dados da arrecadação federal. A Previdência é um dos tripés
da Seguridade Social, juntamente com a Saúde e Assistência Social, e tem sido
altamente superavitária. Em 2011, o superávit da Seguridade Social superou 77
bilhões de reais; em 2010, 56 bilhões; e em 2009, 32 bilhões, conforme dados
oficiais segregados pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita – Anfip (www.anfip.org.br).
O reiterado superávit da Seguridade Social deveria estar fomentando debates
sobre a melhoria da previdência, da Assistência e da Saúde dos brasileiros.
Isso não ocorre devido à prioridade para o pagamento da dívida mediante a
Desvinculação das Receitas desses setores para o cumprimento das metas de
superávit primário, ou seja, a reserva de recursos para o pagamento da dívida
pública.
Ataques à Previdência Social
A Previdência Social, diga-se, tem sido continuamente atacada por
aqueles a quem interessa uma parcela cada vez maior do orçamento destinada ao
pagamento da dívida. Não é por acaso que, ao longo dos últimos anos, os ataques
à Previdência Social têm se multiplicado no mesmo ritmo em que se multiplicam
os montantes destinados à dívida. A contribuição previdenciária dos inativos, o
fator previdenciário, a criação de fundos de previdência complementar dos
servidores públicos, o fim do direito dos inativos do setor público à paridade
salarial com os servidores da ativa, são todas medidas que objetivam privatizar
a Previdência Social, diminuindo seu peso no Orçamento Público e permitindo aos
rentistas abocanhar uma parcela ainda maior desses recursos.
IHU On-Line – Há alguma novidade no orçamento de 2013?
Maria Lucia Fattorelli – Na
apresentação feita pela ministra de Planejamento sobre o orçamento para 2013, o
governo alega que a dívida pública e as taxas de juros estariam em forte queda.
Porém, tal dado se refere à distorcida parcela denominada “Dívida líquida do
setor público”. O Brasil é o único país que calcula a dívida “líquida”, algo
que não tem sentido lógico e que distorce o verdadeiro estoque da dívida
pública.
Para obter a chamada dívida líquida, o governo desconta créditos que
tem a receber (tais como as reservas internacionais), mas não considera as
demais obrigações a pagar, como o passivo externo, por exemplo. Além disso,
enquanto os títulos da dívida brasileira pagam as taxas de juros mais elevadas
do mundo – em 2011, em torno de 12% –, as reservas internacionais (aplicadas em
sua maioria em títulos da dívida norte-americana) não rendem quase nada ao Tesouro
Nacional. Aí está outra grande distorção: subtrair parcelas que têm custos
totalmente distintos. Por fim, a definição de dívida líquida é esdrúxula, uma
vez que os juros nominais efetivamente pagos são calculados e pagos sobre a
dívida bruta, e não sobre a líquida. Adicionalmente, as amortizações têm sido
feitas sobre a dívida bruta e não sobre a dívida líquida. A utilização desse
conceito tem servido apenas para aliviar o peso da dívida pública brasileira,
que já está perto de 80% do PIB.
IHU On-Line – Analisando historicamente a peça orçamentária, percebe
diferenças significativas entre os governos militares, governos FHC e, agora,
os governos Lula e Dilma?
Maria Lucia Fattorelli – Há mais
semelhanças do que diferenças, pois todos estes governos atenderam às recomendações
do Fundo Monetário Internacional – FMI e do sistema financeiro na
elaboração do orçamento, priorizando o pagamento da dívida em detrimento das
áreas sociais. Desde o golpe militar de 1964, as condições sociais dos
brasileiros vêm deteriorando, e medidas essenciais – tais como reforma agrária,
implantação de modelo tributário justo, prioridade dos gastos com educação e
saúde, entre outras – vão ficando cada vez mais longínquas.
A alteração mais relevante é de caráter apenas aparente: se antes havia
a preponderância da dívida externa, hoje a maior parte dos gastos com a dívida
se referem à denominada dívida interna, que, apesar do nome, também possui como
beneficiários bancos e investidores estrangeiros. A dívida interna é uma nova
face da dívida externa e continua retirando recursos dos mais pobres (por meio
dos tributos incidentes sobre o consumo e sobre os salários) para privilegiar
os rentistas e especuladores.
Equador: a
experiência da auditoria oficial da dívida pública
Maria Lucia Fattorelli, Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida do Brasil
No ano de 2007, o presidente Rafael Correa criou a Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público (CAIC), cuja atribuição foi a realização da auditoria oficial da dívida pública do país – tanto interna quanto externa; os seus impactos sociais, ambientais e económicos. Essa atitude soberana foi um passo fundamental em direção à conquista da verdadeira independência da América Latina, ao mesmo tempo em que significou uma vitória dos movimentos sociais que há décadas lutam pela auditoria da dívida pública, que consome a maior parcela dos recursos orçamentários.
O relatório final da CAIC apresentou ao presidente Rafael Correa o resultado das investigações técnicas, identificando inúmeras irregularidades e indícios de ilegalidades e ilegitimidades no processo de endividamento público equatoriano, tudo devidamente documentado e provado.
O presidente determinou a suspensão dos pagamentos aos detentores dos títulos da dívida externa e submeteu tal relatório a crivos jurídicos nacionais e internacionais. Após o referendo jurídico às conclusões da CAIC, o presidente anunciou a proposta de aceitar somente 25 a 30% do valor dos títulos da dívida externa comercial com a banca privada (Bônus 2012 y 2030). Aqueles detentores que não concordassem com a proposta teriam que recorrer à Justiça, apresentando as suas petições contra o Equador. Face às provas contundentes de ilegalidade da dívida, 95% dos detentores dos títulos aceitaram a proposta, demonstrando a importância da auditoria como instrumento capaz de alterar a atual correlação de forças que historicamente tem colocado os governos latino-americanos submissos ao mercado.
A atitude soberana do Equador abriu caminho para as auditorias na América Latina. Na reunião da ALBA realizada em Novembro de 2008, o presidente Correa apresentou o tema e, como consequência, Bolívia e Venezuela anunciaram também a intenção de realizar a auditoria das suas dívidas públicas.
(…)
Após de confrontado o problema da dívida pública equatoriana, os investimentos em saúde e educação naquele país quadruplicaram; os investimentos públicos são visíveis, cabendo citar o exemplo das recentes rodovias de concreto; diversos sectores estão a ser recuperados, ressaltando-se a melhoria nas condições de vida do sofrido povo equatoriano.
Evidentemente a atitude soberana do governo equatoriano e a ética que marca as ações do presidente Correa estão a provocar profundo incómodo a sectores financeiros, aos que se aproveitavam da corrupção antes instalada, aos amantes do imperialismo e que servem a setores da direita elitista que foi varrida do poder.
A tentativa de golpe de estado no Equador foi, sem sombra de dúvidas, uma das evidências desse incomodo. O próprio presidente Correa declarou imediatamente que estava a ocorrer uma “conspiração”, a fim de perpetrar um “golpe de estado”.
(…)
A melhoria das instituições estatais, dos servidores públicos e da prestação de serviços à sociedade em geral tem sido possibilitada no Equador devido ao alívio decorrente dos pagamentos de juros e amortizações de uma dívida que era decisivamente ilegal, ou seja, os recursos antes destinados ao serviço da dívida agora são destinados para beneficiar do povo.
(…)
Tive a honra de ser nomeada pelo presidente Correa para auxiliar no processo de auditoria oficial da dívida pública, ao integrar a CAIC no Equador, tendo também sido requisitada pela Câmara dos Deputados para auxiliar as investigações da CPI da Dívida Pública no Brasil. As semelhanças do processo de endividamento dos nossos países desde a década de 70 são impressionantes e os documentos a que tivemos acesso comprovam que a dívida externa faz parte de um mesmo processo de dominação financeira do continente, em detrimento das necessidades mais urgentes dos nossos povos.
Algumas semelhanças merecem ser destacadas, por serem flagrantemente ilegais: Tanto a CAIC equatoriana como a CPI brasileira identificaram que a dívida externa dos nossos países surgiu nos anos 70, contratada por governos ilegítimos (ditaduras), e apresentaram excessivo crescimento a partir da elevação unilateral das taxas de juros pelos bancos privados internacionais que controlavam a taxa Prime nos Estados Unidos e a taxa Libor na Inglaterra. Esses bancos privados eram ao mesmo tempo os maiores credores daquela dívida ilegítima, ou seja, atuaram unilateralmente e em benefício próprio. Tal atitude é legalmente questionável, segundo o disposto na Convenção de Viena a respeito do Direito dos Tratados (1969), no seu artigo 62, que trata do “Cambio fundamental de circunstâncias”.
As investigações comprovaram que essa elevação unilateral das taxas de juros provocou a crise da dívida dos anos 80, levando a uma situação que obrigou o Banco Central dos nossos países a assumir questionáveis dívidas de entidades públicas e privadas, tornando-se o responsável perante os bancos privados internacionais. Os contratos firmados pelo Brasil e Equador em 1983, 1984 e emenda em 1986 são extremamente semelhantes, variando apenas cifras e pequenos detalhes, mas a essência imperialista e o desrespeito à nossa soberania são idênticos. Em 1992 houve renúncia à prescrição da dívida externa equatoriana com bancos privados, enquanto que no Brasil se apurou a realização de obscuras operações no Canadá, onde também foram firmadas solicitações de renúncias que não chegaram a ser devidamente esclarecidas à CPI. Em 1994, ambos os países se submeteram ao Plano Brady, transformando aquela questionável dívida que já poderia inclusive estar prescrita em títulos que depois foram aceitos no processo de privatizações para adquirir as nossas empresas estatais estratégicas e lucrativas. Posteriormente, houve a transformação em títulos denominados Global, tanto no Equador como no Brasil.
Elaboramos uma simulação para demonstrar o impacto provocado pela elevação das taxas de juros, chegando ao impressionante resultado que demonstra que caso as taxas tivessem sido mantidas em 6%, tal como contratadas, a dívida externa estaria completamente paga e ainda haveria crédito a ser ressarcido tanto ao Brasil como ao Equador.
Outra importante conclusão foi possibilitada pela comparação entre os ingressos de recursos e saídas, demonstrando-se que o processo de endividamento não foi uma fonte de financiamento, mas sim um mecanismo de extração de recursos de nossas nações em favor do sector financeiro privado. As transferências líquidas efetuadas pelo Equador aos rentistas foram de 7,13 bilhões de dólares (1976 – 2006) e pelo Brasil foi de 144 bilhões de dólares (1971 – 2008). Apesar desse impressionante volume de pagamentos, as dívidas dos dois países continuaram a crescer.
Esses são apenas alguns exemplos, mas inúmeras foram as irregularidades encontradas nas duas investigações. A grande diferença é que o Equador reagiu diante das ilegalidades apontadas pelas investigações, enquanto no Brasil as dívidas interna e externa estão a crescer aceleradamente: a dívida interna já supera R$ 2,1 trilhões e a externa US$ 282 bilhões (R$ 465 bilhões). Adicionalmente, a cada ano, o pagamento do serviço da dívida tem exigido um volume de recursos cada vez mais relevante: em 2008 foram destinados 30,5% dos recursos do Orçamento Geral da União para o pagamento de juros e amortizações. Em 2009, esse percentual saltou para 36%, enquanto áreas sociais fundamentais receberam quantias várias vezes menores, como a saúde, educação e assistência social.
Ao enfrentar as ilegalidades e priorizar os interesses sociais, o Equador deu ao mundo uma lição de soberania, demonstrando respeito à sua gente e à sua condição de nação independente. A tentativa de golpe de estado certamente visou retaliar a atuação daquele presidente que, ao invés de seguir contentando as exigências do império financeiro, teve coragem e altivez para mudar o rumo da história do seu país.
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