Perfil  agrário do Brasil

 

A política agrária brasileira nas últimas décadas não alterou a elevada concentração de terras e o modelo agrícola voltado para culturas de exportação, nem melhorou o volume de oportunidades de trabalho no campo, além de ter contribuído para a devastação da floresta amazônica. A conclusão é do geógrafo Eduardo Girardi, autor de um abrangente e detalhado atlas sobre o setor agrário brasileiro, resultado de sua tese de doutorado desenvolvida na Faculdade de Ciências e Tecnologia, câmpus de Presidente Prudente (FCT). A reportagem é do Jornal Unesp e reproduzida pela Agência Envolverde, 30/06/09.

 

Sustentado por cerca de 300 mapas, o estudo de Girardi aborda a pobreza, o desmatamento, a distribuição da posse fundiária, o agronegócio, os conflitos agrários e a política de assentamentos dos últimos anos. “Através do mapeamento, foi possível identificar a configuração da estrutura agrária e como ela pouco contribui para o desenvolvimento social no campo”, afirma.

 

A pesquisa constata que os imóveis rurais ocupam quase a metade do território brasileiro. De 1992 a 2003, devido à incorporação de terras públicas a programas de reforma agrária, a área que eles englobam cresceu 35%, passando de 310 milhões para 410 milhões de hectares. O número de propriedades no campo aumentou 47%, de 2,9 milhões para 4,2 milhões.

 

Concentração: No entanto, essas transformações não reduziram a concentração da posse da terra. Girardi ressalta que tal fenômeno pode ser medido pelo índice de Gini, em que 1,0 é valor máximo da concentração: em 1992, ele era de 0,826, e, em 2003, passou para 0,816.

 

A situação se evidencia também nas diferenças entre as áreas destinadas às pequenas, médias e grandes propriedades. Em 2003, os pequenos imóveis, com tamanho médio abaixo de 200 hectares, representavam 92% do total de propriedades, mas ocupavam apenas 28% da área agrária. As propriedades de médio porte, de 200 a 2 mil hectares, respondiam por 6% do total de imóveis e 36% da área. Já aquelas acima de 2 mil hectares, embora não chegassem a 1% do total, ocupavam 35% da área do setor.

 

“Das novas terras incorporadas na estrutura fundiária brasileira, de 1992 a 2003, o porcentual das pequenas propriedades cresceu pouco, para 93% do total dos imóveis e para 34% da área; já as médias e grandes, somadas, atingiram 7% do total de imóveis e 66% da área”, comenta Girardi.

 

O geógrafo explica que, se a taxa de crescimento do número de imóveis for superior à taxa de crescimento de sua área, ocorre uma evolução desconcentradora das propriedades rurais; no caso contrário, há concentração. “A partir da interpretação dos dados, verificamos que a evolução no Sul foi desconcentradora, no Sudeste e Nordeste foi equilibrada, e no Norte e Centro-Oeste foi concentradora”, esclarece.

 

A partir das informações do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Girardi também assinala que, em 1998, cerca de 75,4 milhões de hectares de terras exploráveis não tinham nenhuma atividade produtiva - o correspondente a 23% da área agricultável do País. Das terras não exploradas, 45% se localizavam na Região Norte, 24% no Nordeste, 26% no Centro-Oeste, 2% no Sudeste e 1,9% no Sul.

 

Modelo agrário: O estudo mostra, ainda, que o atual modelo agrário não tem contribuído para criar empregos e fixar o homem no campo. Nos últimos dez anos, cerca de 1,5 milhão de pessoas deixaram as atividades agropecuárias. De acordo com o Censo Agropecuário 2006 do IBGE, 16 milhões de pessoas estavam então ocupadas nos estabelecimentos agropecuários. As pequenas propriedades rurais empregavam 87% do total de postos de trabalho no campo, enquanto as grandes ficavam com apenas 2,5%.

 

Comentando as conclusões do atlas, o economista José Gilberto de Souza, professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV), câmpus de Jaboticabal, lembra que, em 2008, o setor sucroalcooleiro recebeu cerca de R$ 6,5 bilhões do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Porém, os dados revelam a redução do número de trabalhadores por hectare nessas áreas.

 

Girardi enfatiza que os investimentos confirmam um direcionamento da agricultura brasileira para o agronegócio. “A alta produtividade está concentrada no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, em contraste com a estagnação do Norte e Nordeste, onde grande parte dos imóveis não dispõe sequer de tratores”, observa. O geógrafo lembra que a concentração da estrutura fundiária no Brasil está inserida no modelo de desenvolvimento exportador.

 

Em 2006, dos US$ 46 bilhões do superávit total da balança comercial (que envolve a relação entre exportações e importações), US$ 42 bilhões foram obtidos pelo setor agropecuário. Cerca de 80% das exportações agropecuárias brasileiras são de apenas nove produtos (soja, carnes, cana-de-açúcar, café, couro, fumo, laranja, produtos florestais e algodão), que ocupam 74% de toda área plantada no País. “Enquanto isso, em 2004, cerca de 15 milhões de brasileiros com carência alimentar viviam no campo”, aponta Girardi .

 

Para Souza, o modelo agrário baseado na concentração fundiária precisa ser revertido. “A reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura familiar devem estar inseridos em uma estratégia vinculada à produção alimentar”, acrescenta.

 

Ocupações e assentamentos: Como reação a esse modelo, Girardi assinala que trabalhadores rurais sem oportunidades ocupam áreas para ter uma opção de renda e vida. O Atlas mostra que, de 1988 a 2006, houve cerca de sete mil ocupações de terras no Brasil, com mais de um milhão de famílias envolvidas, que se concentraram no centro-sul, leste e nordeste do País. “Essas são as áreas onde a reforma agrária tem sentido, pois desconcentra as terras e otimiza a sua utilização”, argumenta Girardi.

 

Entre 1988 e 2006, os programas de reforma agrária criaram 7.666 assentamentos, áreas destinadas a pequenos agricultores, em 64,5 milhões de hectares, beneficiando cerca de 900 mil famílias. Eles se concentraram, em sua maioria, na Região Norte, junto à fronteira agropecuária. Apenas na Amazônia Legal, foram assentadas 62% das famílias, sendo que nas Regiões Sul e Sudeste, apenas 28%. “As famílias foram assentadas na região amazônica, em grande parte em terras públicas, sem a infraestrutura necessária de transporte, serviços de saúde, educação e assistência técnica”, aponta o pesquisador.

 

Outra análise do trabalho de Girardi ilumina a violência no campo. Nos últimos 20 anos, 1,1 mil trabalhadores rurais foram assassinados e cerca de 19 mil famílias foram retiradas de áreas ocupadas. “Por fazer parte da fronteira agropecuária, o leste do Pará e o norte do Maranhão foram as regiões com maior concentração dos conflitos, afirma.

 

Cooperativismo: O professor Roberto Rodrigues - da FCAV e ex-ministro do governo - Lula considera que a agricultura brasileira não deve se sustentar a partir de “obras de caridade”, em que se converteu, segundo ele, a política de assentamentos rurais. Rodrigues defende o modelo de cooperativas de agricultores com vocação e conhecimento para a cultura agrícola. “Neste modelo, ganham os agricultores, o governo e a população, que terá produtos de melhor qualidade”, avalia.

 

Rodrigues destaca que a terra representa apenas 15% do valor de um empreendimento agrário. “A agricultura precisa de crédito, conhecimento técnico e infraestrutura de escoamento da produção”, afirma. Ele discorda do argumento de que não haveria apoio ao pequeno produtor. “O governo tem aumentado significativamente o crédito para a agricultura familiar, implantou o seguro gratuito de safra e a produção vinculada à distribuição de cestas básicas pelas prefeituras próximas”, enfatiza.

 

Banco de dados: o Atlas agrário servirá como um banco de dados para consulta pública e suporte para pesquisas acadêmicas. Uma versão impressa deverá ser publicada até o final do ano, mas o material pode ser acessado no site do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera).

 

Com apoio da Fapesp, Girardi utilizou dados de IBGE, Incra, Comissão Pastoral da Terra, Ministério do Trabalho e Emprego, INPE e FAO (Food and Agriculture Organization).

 

Para o orientador da tese, o professor Bernardo Mançano Fernandes, o Atlas é o mais completo sobre o tema produzido até hoje no Brasil. “É um marco do estado da arte do conhecimento de tudo que foi estudado no Nera que servirá de referência aos estudiosos de diversas áreas do conhecimento e na elaboração de políticas públicas”, aponta.

 

Política para setor estimulou desmatamento: Nos últimos 11 anos, cerca de 54 milhões de hectares da floresta amazônica foram desmatados, conforme dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial). No mesmo período, na região, a atividade agropecuária se expandiu sobre 23 milhões de hectares, dos quais 45% de pastagens.

 

Para Girardi, a política agrária das últimas décadas,favorável ao agronegócio e ao latifúndio, foi a responsável pelo forte desmatamento ocorrido nos nove Estados da Amazônia Legal. “Apesar dos assentamentos instalados na região contribuírem com o desflorestamento, a maior parte dele foi feito por particulares”, diz. A ocupação da Amazônia começou durante o regime militar, para não se realizar a reforma agrária nas Regiões Sul e Sudeste. “Essa estratégia não mudou com a redemocratização do País”, observa.

 

Para Girardi, a ocupação de novos espaços da Amazônia é desnecessária, pois as terras já desmatadas que não foram devidamente exploradas, em 2007, somavam 86,7 milhões de hectares na Amazônia Legal. “Isso sem considerar a necessária mudança do sistema técnico-produtivo da agropecuária, que utiliza grandes extensões de terras”, analisa.

 

DADOS DO IBGE – 2006

 

O IBGE divulgou há poucos dias o Censo Agropecuário de 2006. Em editorial, o jornal Brasil De Fato, fez um resumo de seus resultados. Pela importância, reproduzimos esse resumo.

 

Em relação ao Censo anterior, de 1996, “diminuiu o número de estabelecimentos com menos de 10 hectares. Eles representam os pobres do campo, e eram em 2006 cerca de 2,5 milhões de famílias. A área ocupada por eles baixou de 9,9 milhões de hectares para apenas 7,7 milhões, correspondendo a apenas 2,7% da área total brasileira. No outro lado, temos apenas 31.899 fazendeiros que dominam 48 milhões de hectares em áreas acima de mil hectares. E outros 15.012 fazendeiros com áreas superiores a 2.500 hectares, que totalizam 98 milhões de hectares. São os fazendeiros do agronegócio, que representam menos de 1% dos estabelecimentos, mas controlam 46% de todas as terras”.

 

“De um lado, a grande propriedade do agronegócio se especializou em produtos para exportação, como soja, milho, cana e pecuária, que dominam a maior parte das terras. Esses três produtos usam 32 milhões de hectares, enquanto os principais alimentos da dieta brasileira usam apenas 7 milhões de hectares para plantar arroz, feijão, mandioca e trigo”.

 

O agronegócio “ficou mais dependente do capital financeiro e das empresas transnacionais. O valor bruto da produção agrícola (PIB agrícola) foi de 141 bilhões de reais, em 2006. Destes, 91 bilhões produzidos pelo agronegócio, mas precisou de 80 bilhões de reais de credito rural dos bancos e da poupança nacional para poder produzir. Já a agricultura familiar, produziu 50 bilhões de reais, e utilizou apenas 6 bilhões de reais”, analisa.

 

“A agricultura familiar produziu comida, e para o mercado interno. O agronegócio produziu commodities, dólares, para o mercado externo. Por isso é dominada pelo controle das grandes empresas transnacionais que controlam o mercado e os preços. As 20 maiores empresas que atuam na agricultura tiveram um PIB de 112 bilhões no ano de 2007. Ou seja, praticamente toda produção do agronegócio é controlada na verdade por apenas 20 grandes empresas. E, em sua maioria, estrangeiras”.

 

Mas, eis aqui alguns resultados do Censo Agropecuário – que não é uma pesquisa, mas um levantamento in loco dos 5.175.489 estabelecimentos agropecuários do país:

 

1) Em 2006 (ano-base do Censo), os estabelecimentos rurais com menos de 10 hectares somavam uma área de 7,7 milhões de hectares - menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos rurais no país. No entanto, esses estabelecimentos com menos de 10 hectares são mais de 47% dos estabelecimentos rurais do Brasil - e neles vivem 2,5 milhões de famílias. Uma observação importante: mais de 2 milhões de estabelecimentos dessa dimensão deixaram de existir entre 1996 (ano-base do Censo anterior) e 2006.

 

2) A área ocupada pelos estabelecimentos com mais de 1.000 hectares é de 48 milhões de hectares - mais de 43% da área total dos estabelecimentos rurais. Porém, esses estabelecimentos são apenas 0,91% dos estabelecimentos rurais do país e pertencem a somente 31.899 proprietários.

 

3) Dos 5.175.489 estabelecimentos agropecuários, 4.254.808 não obtiveram qualquer financiamento no ano-base. Portanto, em mais de 5 milhões de estabelecimentos, apenas 920.681 conseguiram algum tipo de financiamento. Os estabelecimentos com área total inferior a 100 hectares integraram o maior grupo dos que não obtiveram financiamento (3.634.351 unidades, correspondendo a 85,4%).

 

4) Os estabelecimentos com área total igual ou superior a 1.000 hectares (0,91% do total de estabelecimentos) obtiveram 43,6% dos recursos de financiamento rural. O agrônomo Gerson Freitas, ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), em entrevista ao “Brasil De Fato”, considera que “isso é reflexo do apoio direto do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no investimento para a criação de empresas nacionais globais, especialmente na área do agronegócio, a exemplo dos casos recentes da Sadia/Perdigão e da JBS/Bertin”.

 

5) Apesar dessa desigualdade no financiamento, o Censo revela que a agricultura familiar gerou um valor de R$ 677 por hectare contra R$ 358 por hectare dos outros estabelecimentos agrícolas.

 

6) A “monocultura da soja ou do binômio soja-milho, além do algodão, fez por reforçar a desigualdade que marcava a propriedade da terra em uma região historicamente ocupada por uma pecuária ultraextensiva”.

 

7) A produção voltada para a exportação de somente três produtos - soja, milho e cana - ocupa 32 milhões de hectares. A soja, desde o Censo de 1996, “apresentou um aumento de 88,8% na produção, alcançando 40,7 milhões de toneladas em 15,6 milhões de hectares, um aumento de 69,3% na área colhida. Em termos absolutos, representa um aumento de 6,4 milhões de hectares, caracterizando a soja como a cultura que mais se expandiu na última década”.

 

8) O arroz, feijão, mandioca e trigo, com produção voltada para o mercado interno, ocupam apenas 7 milhões de hectares.

 

9) Os estabelecimentos agropecuários, em 2006, geraram uma receita total de R$ 122.632.154.000. Porém, os estabelecimentos com área menor que 100 hectares geraram 47,13% da receita total (R$ 57.799.470.000) contra 26,62% dos grandes (R$ 32.647.235.000).

10) No campo, o analfabetismo atinge 35% dos homens e 45% das mulheres. Apenas 7% da população rural completou o ensino fundamental.

 

11) Por último, a produção do “agronegócio” é não somente cada vez mais dependente das multinacionais - desde a Monsanto, seus agrotóxicos e transgênicos até as tradings que compram a produção - como as próprias multinacionais entraram diretamente no ramo: 20 empresas, a maioria estrangeiras, controlam o “agronegócio”.

 

solonsantos@yahoo.com.br - notassocialistas.com.br - Fonte primária: IBGE. Comentário do horadopovo@horadopovo.com.br