O Método no Materialismo Histórico

Todo o modo de concepção de Marx, porém, não é uma doutrina, mas um método. Não dá quaisquer dogmas prontos, mas pontos de apoio para uma investigação ulterior e o método para esta investigação" (Engels).

1. O materialismo histórico (1), termo que surgiu após a morte de Marx, se constitui em uma abordagem que vem possibilitando conhecer a concretude da história humana, identificando suas leis. Um dos pontos de partida na construção deste método foi a dialética, conforme a elaboração de Hegel (2), porém considerando que o movimento dialético não ocorre no plano das ideias, mas que é determinado pela realidade, abarcando realidade e pensamento ao mesmo tempo, ou seja, o real é o mundo material, conhecido pelos sentidos, e, as ideias, a representação do mundo real no pensamento.
2. A elaboração por Marx e Engels do método que denominamos materialismo histórico se expressa no material escrito que legaram para a posteridade (suas obras), que ocorre como uma conquista, fruto de suas vivências, estudos e reflexões, que vão sendo aprimorados no decorrer de suas vidas. Obras como Crítica à filosofia do direito de Hegel (1843/44), Manuscritos econômico-filosófico (1844) indicam o posicionamento materialista e o manuseio do método dialético por Marx, o que é aprofundado na obra que marca o inicio de sua colaboração intelectual com Engels, A sagrada família ou A crítica da crítica crítica (1845) e, principalmente, na obra seguinte A ideologia alemã (19845/46). Com o deslocamento da crítica da filosofia para a crítica da economia política a elaboração das ideias e método se aprofundam como na obra Miséria da filosofia (1847). A partir do exílio em Londres que se inicia em 1850, Marx, com apoio de Engels, realiza estudos exaustivos para entender a sociedade burguesa. Em 1857 Marx escreve Introdução, onde a concepção teórico-metodológica aparece nítida e, em obras seguintes como Para a crítica da economia política (1859) e O capital. Crítica da economia política (primeiro livro, 1867; segundo livro 1885 e terceiro livro 1894) ( 3), procede ao estudo das leis do movimento do capital expondo o principal estudo já produzido sobre a dinâmica da ordem burguesa (capitalismo).
3. A questão do método se refere ao modo de proceder à reprodução do objeto real (neste caso determinada sociedade) no âmbito das ideias (teoria), ou seja, a reprodução ideal do movimento real.
4. O ponto de partida no estudo de Marx e Engels foi a produção das condições materiais da vida social, portanto o estudo da economia política.
5. A definição deste objeto de estudo como ponto de partida para compreensão da sociedade não se refere a uma preferência pessoal dos pesquisadores, mas decorre do próprio objeto de pesquisa: esta definição possibilita distinguir com clareza o que é da ordem da realidade - do objeto, do que é da ordem do pensamento - o conhecimento operado pelo sujeito. Parte-se do que aparece como real, concreto, para se chegar a conceitos e abstrações, formular categorias e compreender a totalidade.
6. No método se utilizam dois caminhos: um caminho de ida que utiliza a análise; um caminho de volta que utiliza a síntese e a compreensão da totalidade (ou das totalidades), com uma nova qualidade.
7. Abstração é a capacidade intelectual que permite extrair um elemento de seu contexto (totalidade), isolá-lo, examiná-lo e extrair suas determinações mais concretas até atingir suas determinações mais simples. Neste nível o elemento abstraído torna-se “abstrato”, o que não ocorre quando inserido na totalidade de que foi extraído. Nela, ele se concretiza, enquanto “saturado” de muitas determinações.
8. O real, o concreto, aparece inicialmente como dado, que representa um todo caótico. Pela observação mais atenta dos dados, se percebe que podem se referir ou se referem a abstrações destituídas de sentidos se não articulados com suas determinações. Para sua compreensão se procede ao processo de análise articulando os dados com a compreensão de suas determinações e neste caminho se elaboram abstrações cada vez mais tênues e se estabelecem conceitos cada vez mais simples.
9. Um exemplo, citado por Marx, se refere ao que, na economia, costuma aparecer como sujeito do ato social de produção como um todo, ou seja, a população. Uma observação mais atenta revela que isto é falso; que população é uma abstração, quando se ignora, por exemplo, as classes sociais que a compõem.
Por seu lado classes são destituídas de sentido se estão ocultos os elementos que lhe caracteriza como o capital, o trabalho assalariado etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. não possui concretude.
10. Portanto, pela análise do todo aparentemente caótico, diversos elementos são abstraídos e progressivamente chega-se a conceitos, abstrações que remetem a determinações mais simples.
11. Entretanto a análise, apesar de necessária, não é suficiente para reproduzir idealmente o real e o concreto. Para dar concretude, depois de compreender as relações e determinações mais simples, é necessário proceder pelo caminho inverso, reconstruir a totalidade como síntese de muitas determinações e relações.
12. Assim o objeto estudado, o todo, aparece como totalidade. O concreto é concreto justamente porque é síntese de muitas determinações, ou seja, a unidade do diverso.
13. Então, o concreto aparece no pensamento como síntese, como resultado e não como ponto de partida.
14. Conhecimento teórico é, nesta metodologia, o conhecimento do concreto que constitui a realidade, mas que não se apresenta prontamente ao pensamento. É necessário um esforço reflexivo estruturado para que o concreto se apresente ao pensamento.
15. Portanto, a realidade é concreta por ser a “síntese” de muitas determinações e relações: a “unidade do diverso”, que é “própria de toda totalidade”.
16. Neste procedimento metodológico, portanto, estão articuladas três categorias teórico-metodológicas: totalidade, contradição e mediação.
17. Totalidade, no materialismo histórico, é diferente do “todo”, constituído por partes integradas funcionalmente. Diferente por ser totalidade de alta complexidade (determinada formação histórica e social) constituída por totalidades de menor complexidade onde nenhuma totalidade é “simples” e onde certas totalidades são mais determinantes que outras. Pelo método da análise e síntese podem-se conhecer as tendências que operam em cada totalidade.
18. Outra questão se refere ao caráter dinâmico ou mutável de determinada totalidade histórica. O movimento (ou mutação) resulta do caráter contraditório de todas as totalidades que constituem a totalidade de determinada conformação social e histórica. As contradições necessitam ser investigadas e, pelo método, além de identificar sua natureza, se procede, também, o conhecimento de seus ritmos, limites, controles e soluções.
19. Outra questão ainda é a compreensão das relações internas que se estabelecem entre as totalidades constitutivas de determinada sociedade, as relações entre estas e as relações com a totalidade (determinada formação histórica e social). Ocorre que tais relações não são diretas: existem sistemas de mediações que operam principalmente no interior de cada totalidade constitutiva, decorrente da estrutura peculiar de cada totalidade. As relações também são mediadas pelos distintos níveis de complexidade das totalidades. Estas mediações, que precisam ser investigadas, determinam a diferenciação das totalidades constitutivas da totalidade maior (por exemplo, a sociedade capitalista) e revela o caráter do concreto desta sociedade que se apresenta como “unidade do diverso”.
20. As mediações, por exemplo, podem estar relacionadas com questões objetivas, como o tipo de inserção de determinada nação ou grupo de nações na ordem capitalista mundial, políticas de concessão de direitos e de acesso ao consumo das classes subalternas, guerras, regimes políticos que utilizam explicitamente aparatos repressivos contra determinadas classes etc.
21. As mediações podem também estar associadas com aspectos do campo ideológico, heranças culturais (por exemplo, a religiosidade e as questões relacionadas com etnias e heranças coloniais) ou com o impacto na consciência de classes de determinados acontecimentos como, por exemplo, o fracasso da experiência dos regimes socialistas do leste europeu e parte da Ásia.
22. Retornando a questão da dialética no materialismo histórico, cabe reiterar que o movimento dialético não ocorre no plano das ideias, mas é determinado pela realidade, abarcando realidade e pensamento ao mesmo tempo, ou seja, o real é o mundo material, conhecido pelos sentidos, e, as ideias, a representação do mundo real no pensamento.
23. Por fim cabe ressaltar que mesmo com a utilização do método para proceder à reflexão e à representação do mundo real no pensamento, a representação resultante também é sujeita a sistemas de mediações como os relacionados com as crenças, o individualismo (ou o narcisismo), a submissão a determinados “argumentos de autoridade” e a vivência concreta em um “modo de andar na vida”, determinado pela inserção de classe.

Nota: Esta parte é, basicamente, uma leitura resumida do livro “Introdução ao estudo do método de Marx” de José Paulo Netto (Netto, 2011), acrescidas de outras contribuições.

Pontos de apoio: 1. A produção dos meios de vida, no decorrer da história, implica em um sujeito (os humanos) e um objeto (a natureza), através do trabalho humano. Isto implica em uma unidade da história humana (sujeito, a humanidade e objeto, a natureza). Entretanto estas categorias (humanos e natureza) são abstrações. 2. Unidade não é identidade. A historicidade, enquanto identidade, se refere a certa época e formação social (períodos e subperíodos históricos) que implicam em uma identidade histórica, portanto, que vão além da unidade. 3. O trabalho produz sociabilidade e se expressa em relações de trabalho (3). 4. Os períodos históricos se referem principalmente a propriedade dos produtos do trabalho humano (apropriação dos resultados do trabalho), mas também ao modo como este trabalho é organizado, base técnica utilizada na produção, distribuição dos produtos, relações sob as quais o trabalho ocorre e demais relações que se estabelecem. 5. Qualquer ato de produção, por mais elementar, implica a manipulação e transformação de materiais naturais com o objetivo premeditado de obter como resultado um produto, que é um novo material dotado de uma finalidade útil desejada. Requer a consciência da existência de relações materiais de causa-efeito definidas, conforme se pode observar no esquema abaixo:

Processo de conhecimento humano na concepção do materialismo histórico

O conhecimento reage continuamente sobre a prática material, a saber:

Concreto real – concreto sensorial – abstrações simples – concreto pensado

I.  Concreto real e o concreto sensorial seriam a etapa material, o processo de produção;
II.  Abstrações simples e o concreto pensado corresponderiam à etapa mental.

Nota: A relação abstrato/concreto no método da economia política, com adaptações (Germer, 2001)

Assim, a teoria e a prática são atividades que não podem existir isoladamente uma da outra (4).

6. Ao transformar os materiais naturais, o ser humano interpreta continuamente a estrutura, a dinâmica e os efeitos positivos e negativos da sua ação sobre a natureza, testando-os com base nessa interpretação, que vai reformulando e refinando, conforme experiência adquirida. 7. Portanto, essa consciência, resultante da realização repetida e continuamente aperfeiçoada de ações com a finalidade desejada, constitui o processo do conhecimento no seu conjunto. 8. A geração do conhecimento é decorrente do intercâmbio do ser humano com a natureza, através do trabalho. 9. As relações de trabalho fundamentam o modelo de práxis. 10. No materialismo histórico, práxis se refere à ação e reflexão dos seres humanos sobre o mundo para transformá-lo, apontando para a superação da cisão entre poesis e práxis (5). 11. O conhecimento humano não possui um caráter eterno e atemporal, mas é determinado pela história. 12. Um passo necessário para apreender as riquezas das relações sociais, portanto, consiste na compreensão do processo de produção e suas leis, particularmente para a compreensão da sociedade burguesa. 13. As relações de produção (6) em qualquer sociedade constituem um todo e a compreensão da produção permite o conhecimento verdadeiro de uma determinada sociedade como totalidade. 14. Os humanos produzem em sociedade, neste sentido, na abordagem histórica da produção econômica, o objeto é a sociedade e não o indivíduo. 13. Os humanos reais, vivendo em sociedade, são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que corresponde a tal desenvolvimento. 15. As relações de produção se expressam em abstrações ou expressões teóricas na forma de categorias econômicas. 16. Entretanto, o conhecimento da produção material não basta para esclarecer a riqueza das relações sociais que são determinadas de modo complexo. 17. Os humanos, vivendo e produzindo socialmente expressam um processo, um movimento que se dinamiza por contradições, cujas superações conduzem a diferentes patamares de complexidade nas quais novas contradições impulsionam outras superações. 18. A consciência humana é determinada pelo processo de vida real, ou seja, a vida determina a consciência. 19. Não se parte de como as coisas são imaginadas ou representadas na mente humana para se chegar aos humanos reais. Parte-se dos humanos concretos, de seu processo de vida real. 20. Os humanos produzem ideias, os princípios e as categorias de acordo com as relações sociais. As relações sociais expressam principalmente (mas não somente) as relações de produção.

Ligeiro trabalho de Mário Cabral, um camarada da célula da saúde do PCB.

(1) Materialismo histórico pode ser chamado também de método crítico-dialético. (2) Esta elaboração considera como formato geral da dialética três momentos: afirmação, negação e negação da negação. (3) O primeiro livro foi publicado por Marx, o segundo e o terceiro foram editados por Engels. Um quarto livro, em três volumes, foi publicado por Karl Kautsky entre 1905 e 1910 (Netto e Braz, 2008).  (4) Segundo Marx, o processo de trabalho se decompõe nos seguintes elementos: 1º.) a atividade pessoal do homem ou o trabalho propriamente dito; 2º.) o objeto sobre o qual o trabalho atua; 3º.) o meio através do qual age (MARX, 2015).  (5) Segundo Aristóteles, práxis se refere à realização de um ideal de vida e à atualização de valores éticos, a poesis se refere a um conjunto de procedimentos operativos para produzir consequências quantificadas e especificadas previamente, portanto aponta para certa cisão entre as duas categorias (pensamento e ação) (CHAUÍ, 1999). (6) Se refere às formas como se desenvolvem as relações de trabalho e distribuição no processo de produção e reprodução da vida material. As relações de produção nas sociedades divididas em classes são relações entre classes sociais, entre proprietários e não-proprietários.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Chaui M. Convite à filosofia. 11. edição. São Paulo: Ática; 1999. Engels F. Carta de Engels a W. Sombart, 11 de março de 1895. Beiträge zur Geschichte der deutschen Arbeiterbewegung. 1961(3). Barata-Moura, Tradutor. Lisboa–Moscovo: Editorial "Avante!” – Edições Progresso; 1982. [acesso em 7 nov 2014]. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1895/03/11.htm. Germer C M. A relação abstrato/concreto no método da economia política. In: VI Encontro Anual de Economia Política. 13-15 jun 2001. São Paulo; Sociedade Brasileira de Economia Política. 2001. [acesso em 07 nov 2014]. Disponivel em: http://www.sep.org.br/artigos/download?id=515. Marx K. O capital: crítica da economia política: Livro I. Enderle R, tradutor. São Paulo: Boitempo; 2015. Netto JP. Introdução ao estudo do método em Marx. São Paulo: Expressão Popular; 2011. Netto JP, Braz M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez; 2006. (Biblioteca básica de serviço social; v.1).