MATERIALISMO VERSUS IDEALISMO I
Princípios Elementares de Filosofia

Este não é um curso pretensioso. É dirigido, principalmente, às pessoas que pretendem uma iniciação às concepções marxistas.
Com toda simplicidade, numa linguagem inteligível e acessível a qualquer pessoa, sem a linguagem rebuscada dos clássicos filosóficos. O leitor atencioso irá assimilando os ensinamentos de Marx, Engels e Lênin, com extrema facilidade.
A ideia deste curso nasceu em 1932. Reunindo alguns professores franceses de filosofia, interessados em ensinar aos trabalhadores manuais de Paris as concepções marxistas, para isso, fundaram a Universidade Operária de Paris, que contou com a colaboração de Georges Politzer, filósofo bastante conhecido e excelente professor de filosofia.
Só que, para conhecer a teoria marxista, era indispensável conhecer a sua base: a filosofia materialista, toda sua história, toda sua evolução. Era necessário, também, conhecer as demais filosofias, os conceitos, as concepções e suas mudanças ao longo da história.
Basicamente, existem duas concepções filosóficas: o idealismo e o materialismo. O idealismo permanece praticamente inalterado desde sua criação.
O materialismo também tem sua história e só exibe os contornos que tem hoje, graças aos avanços das ciências a partir do século XIX. Chegamos ao período do século XIX em que se constata um progresso enorme nas ciências, devido, particularmente, a estas três grandes descobertas: a célula viva, a transformação da energia, a evolução (de Darwin) (34), que vão permitir a Marx e Engels, influenciados por Feuerbach, fazer evoluir o materialismo, para nos dar o materialismo moderno, ou dialético.
Com a descoberta da Dialética por Hegel, Marx e Engels, seus discípulos, viraram-na de ponta cabeça, substituíram a metafísica idealista, pelo materialismo. Colocaram-na no lugar e criaram o materialismo dialético, matéria que vamos estudar.
Georges Politzer, um militante comunista, se propunha a ensinar os trabalhadores a teoria revolucionária de Marx, Engels e Lênin. Seus alunos, bastante disciplinados, anotavam todas as aulas de Politzer e acabaram, mais tarde, publicando um livro com as aulas que ministrava. Politzer acabou morrendo na luta contra o nazismo. Nem chegou a ver a publicação de seus alunos, mas já tinha examinado os rascunhos e já os havia aprovado.
Princípios Elementares de Filosofia

O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA FILOSOFIA

I. Duas maneiras de explicar o mundo.
Vimos que a filosofia é o “estudo dos problemas mais gerais”, e que tem por fim explicar o mundo, a natureza, o homem.
Se abrirmos um manual de filosofia burguesa, ficamos espantados com o grande número de filosofias diversas que aí se encontram. São designadas por múltiplas palavras, mais ou menos complicadas, terminando em “ismo”: o criticismo, o evolucionismo, o intelectualismo etc., e esta quantidade cria a confusão. A burguesia, aliás, nada fez para esclarecer a situação, antes pelo contrário. Mas, podemos já fazer
a triagem de todos esses sistemas, e distinguir duas grandes correntes, duas concepções nitidamente opostas:
a) A concepção científica. b) A concepção não científica do mundo.
II. A matéria e o espírito.
Quando os filósofos tentaram explicar o mundo, a natureza, o homem, tudo o que nos rodeia, enfim, foram levados a fazer distinções. Nós próprios constatamos que há coisas, objetos que são materiais, que vemos e tocamos. Depois, outras realidades que não vemos e não podemos tocar, nem medir, como as nossas ideias.
Classificamos, portanto, assim as coisas: por um lado, as que são materiais; por outro, as que não o são, e pertencem ao domínio do espírito, do pensamento, das ideias.
Foi assim que os filósofos se encontraram em presença da matéria e do espírito.
III. O que é a matéria? O que é o espírito?
Acabamos de ver, de uma maneira geral, como se foi levado a classificar as coisas, conforme são matéria ou espírito.
Mas devemos precisar que esta distinção se faz sob diversas formas e com palavras diferentes.
É assim que, em vez de falar do espírito, falamos, afinal, do pensamento, das nossas ideias, da nossa consciência, da alma, assim como, falando da natureza, do mundo, da terra, do ser, é da matéria que se trata.
Assim, ainda quando Engels, no seu livro “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, fala do ser e do pensamento, o ser é a matéria; o pensamento, o espírito.
Para definir o que é o pensamento ou o espírito, o ser ou a matéria, diremos:
O pensamento é a ideia que fazemos das coisas; algumas dessas ideias vêm-nos ordinariamente das nossas sensações e correspondem a objetos materiais; outras, como as de Deus, filosofia, infinito, do próprio pensamento, não correspondem a objetos materiais. O essencial, que devemos fixar aqui, é que temos ideias, pensamentos, sentimentos, porque vemos e sentimos.
A matéria ou o ser é o que as nossas sensações e percepções nos mostram e apresentam, é, de uma maneira geral, tudo o que nos rodeia, a que se chama o “mundo exterior”. Exemplo: a minha folha de papel é branca.
Saber que é branca é uma ideia, e são os meus sentidos que me dão tal ideia. Mas a matéria é a própria folha.
É por isso que, quando os filósofos falam das relações entre o ser e o pensamento, ou entre o espírito e a matéria, ou entre a consciência e o cérebro etc., tudo isso diz respeito à mesma pergunta, e significa: qual é, da matéria ou do espírito, do ser ou do pensamento, o termo mais importante? Qual é o que é anterior ao outro? Tal é a interrogação fundamental da filosofia.
IV. A pergunta ou o problema fundamental da filosofia.
Não há ninguém que não se tenha interrogado em que nos tornamos depois da morte, de onde vem o mundo, como se formou a Terra. E é-nos difícil admitir que sempre existiu qualquer coisa. Tem-se tendência em pensar que num dado momento nada haveria. É por isso que é mais fácil acreditar no que ensina a religião: “O espírito pairava sobre as trevas... depois veio a matéria”. Do mesmo modo, perguntamo-nos onde estão os nossos pensamentos, e, assim, põe-se-nos o problema das relações que existem entre o espírito e a matéria, entre o cérebro e o pensamento. Há, aliás, muitas outras maneiras de pôr a questão. Por exemplo, quais são as relações entre a vontade e o poder? A vontade é, aqui, o espírito, o pensamento; e o poder é o que é possível, é o ser, a matéria. Encontramos, assim, muitas vezes, a questão das relações entre a “consciência social” e a “existência social”.
A pergunta fundamental da filosofia apresenta-se, pois, sob diferentes aspectos, e vê-se quanto é importante reconhecer sempre a maneira em que se põe este problema das relações da matéria e do espírito, uma vez que sabemos que só pode haver duas respostas a essa pergunta: 1. Uma resposta científica. 2. Uma resposta não científica.
V. Idealismo ou materialismo.
Foi assim que os filósofos foram levados a tomar posição nesta importante questão.
Os primeiros homens, completamente ignorantes, não tendo nenhum conhecimento do mundo, nem deles próprios, e não dispondo senão de fracos meios técnicos para agir sobre o mundo, atribuíam a seres sobrenaturais a responsabilidade de tudo o que os espantava. Na sua imaginação, excitada pelos sonhos em que viam viver os seus semelhantes e eles próprios, chegaram à concepção de que cada um de nós tinha uma dupla existência. Perturbados pela ideia deste “duplo”, chegaram a imaginar que os seus pensamentos e sensações eram produzidos, não pelo seu próprio corpo,
“mas por uma alma particular, habitando nesse corpo e deixando-o na hora da morte”. (2)
Em consequência, nasceu a ideia da imortalidade da alma e de uma possível vida do espírito fora da matéria.
Do mesmo modo, a sua fraqueza, a inquietação perante as forças da natureza, em face de todos esses fenômenos que não compreendiam, e que o estado da técnica não lhes permitia corrigir (germinação, tempestades, inundações etc.), levam-nos a supor que, por trás dessas forças, há seres onipotentes, “espíritos” ou “deuses” benéficos ou maléficos, mas, em todo o caso, caprichosos.
Por igual razão, criam em deuses, em seres mais poderosos do que os homens, mas imaginavam-nos, sob a forma de homens ou animais, como corpos materiais. É somente mais tarde que as almas e os deuses (depois o Deus único que substituiu os deuses) foram concebidos como puros espíritos.
Chega-se então à ideia de que há na realidade espíritos que têm uma vida inteiramente específica, completamente independente da dos corpos, e que não têm necessidade deles para existir.
Assim, tal assunto pôs-se de uma maneira mais clara em função da religião, sob esta forma: O mundo foi criado por Deus ou existe desde sempre?
Conforme respondiam desta ou daquela maneira a tal pergunta, os filósofos dividiam-se em duas grandes facções. (3)
Os que, adotando a explicação não científica, admitiam a criação do mundo por Deus, isto é, afirmavam que o espírito tinha criado a matéria, formavam a facção do idealismo.
Os outros, os que procuravam dar uma explicação científica do mundo, e pensavam que a natureza, a matéria era o elemento principal, pertencem às diferentes escolas do materialismo.
Na origem, estas duas expressões, idealismo e materialismo, não significavam outra coisa senão isso.
O idealismo e o materialismo dão, pois, duas respostas opostas e contraditórias ao problema fundamental da filosofia.
O idealismo é a concepção não científica. O materialismo é a concepção científica do mundo.
Ver-se-á, mais adiante, as provas desta afirmação, mas podemos dizer, desde já, que: se  constata bem, na experiência, que há corpos sem pensamento, como as pedras, os metais, a terra, não se constata nunca, pelo contrário, a existência do espírito sem corpo.
Para terminar este capítulo com uma conclusão sem equívoco, veremos que, para responder a esta pergunta: como é que o homem pensa? Não pode haver mais do que duas respostas, inteiramente diferentes e totalmente opostas: 1.ª resposta: O homem pensa porque tem uma alma. 2.ª resposta: O homem pensa porque tem um cérebro.
Conforme dermos uma ou outra resposta, estaremos preparados para dar soluções aos problemas que resultam desta questão. Segundo a nossa resposta, seremos idealistas ou materialistas.

2 Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Obras Escolhidas de Marx e Engels em Três Tomos, Ed. Avante 1985, Tomo III, pp 375-421 3 Idem.

AS DUAS CORRENTES FILOSÓFICAS QUE COMANDAM NOSSO RACIOCÍNIO
O IDEALISMO

I. Idealismo moral e idealismo filosófico. II. Por que devemos estudar o idealismo de Berkeley? III. O idealismo de Berkeley. IV. Consequências dos raciocínios “idealistas”.
V. Os argumentos idealistas: 1. O espírito cria a matéria. 2. O mundo não existe fora do nosso pensamento. 3. São as nossas ideias que criam as coisas.
I. Idealismo moral e idealismo filosófico:
Denunciamos a confusão criada pela linguagem corrente, no que se refere ao materialismo. A mesma confusão encontra-se a propósito do idealismo.
Não é necessário confundir, com efeito, o idealismo moral e o idealismo filosófico.
O idealismo moral consiste em devotar-se a uma causa, a um ideal. A história do movimento operário internacional ensina-nos que um número incalculável de revolucionários, de marxistas, se devotou até ao sacrifício da sua vida por um ideal moral, e, portanto, eram os adversários deste outro idealismo que se chama idealismo filosófico.
Idealismo filosófico é uma doutrina que tem por base a explicação do mundo pelo espírito. É a doutrina que responde à pergunta fundamental da filosofia, dizendo: “é o pensamento o elemento principal, o mais importante, o primeiro”. É o idealismo afirmando a importância primeira do pensamento, afirma que é ele que produz o ser, ou, por outras palavras, que é o “espírito que produz a matéria”.
Tal é a primeira forma do idealismo; encontrou o seu pleno desenvolvimento nas religiões, afirmando que Deus, “espírito puro”, era o criador da matéria. A religião, que pretendeu, e pretende ainda estar fora das discussões filosóficas, é, na realidade, pelo contrário, a representação direta e lógica da filosofia idealista.
Ora, a ciência, intervindo no decurso dos séculos, em breve se tornou necessária para explicar a matéria, o mundo, as coisas, de outro modo que apenas por Deus. Porque, desde o século XVI, a ciência começou a explicar os fenômenos da natureza sem ter em conta Deus e abstendo-se da hipótese da criação.
Para melhor combater estas explicações científicas, materialistas e ateias, foi preciso, pois, levar mais longe o idealismo e negar a existência mesmo da matéria.
Foi ao que se dedicou, no princípio do século XVIII, um bispo inglês, Berkeley, considerado o pai do idealismo.
II. Por que devemos estudar o idealismo de Berkeley?
O propósito do seu sistema filosófico será, pois, destruir o materialismo, tentar demonstrar-nos que a substância material não existe. Escreveu, no prefácio do seu livro “Diálogos de Hylas e de Philonous”. Se estes princípios são aceitos e olhados como verdadeiros, resulta que o ateísmo e o cepticismo são, com o mesmo golpe, completamente abatidos, as perguntas obscuras esclarecidas, dificuldades quase insolúveis resolvidas, e os homens que se compraziam com os paradoxos reduzidos ao senso comum. (4)
Deste modo, para Berkeley, o que é verdadeiro é que a matéria não existe, e é paradoxal pretender o contrário.
Vamos ver como se agarra a isso, para tal nos demonstrar. Mas, penso que não é inútil insistir com os que querem estudar filosofia, para que tomem a teoria de Berkeley em muito grande consideração.
Bem sei que as teses de Berkeley farão sorrir alguns, mas é preciso não esquecer que vivemos no século XXI e beneficiamos de todos os estudos do passado. E veremos, aliás, quando estudarmos o materialismo e a sua história, que os filósofos materialistas de outrora fazem também, por vezes, sorrir.
É preciso, portanto, saber que Diderot, que foi, antes de Marx e Engels, o maior dos pensadores materialistas, ligava ao sistema de Berkeley alguma importância, uma vez que o descreve como um sistema que, para vergonha do espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de combater, embora o mais absurdo de todos! (5)
O próprio Lenine consagrou numerosas páginas à filosofia de Berkeley, e escreveu:
(Os filósofos idealistas mais modernos) não produziram contra os materialistas qualquer argumento que não possamos encontrar no bispo Berkeley.
Enfim, eis a apreciação sobre o imaterialismo de Berkeley, dada por um manual de história da filosofia utilizado nos liceus: Teoria ainda imperfeita, sem dúvida, mas admirável, e que deve destruir para sempre, nos espíritos filosóficos, a crença na existência de uma substância material. (7)
Eis a importância para toda a gente - embora por razões diferentes, como vos foi mostrado por estas citações - de tal raciocínio filosófico.
III. O idealismo de Berkeley
O propósito deste sistema consiste, pois, em demonstrar que a matéria não existe. Berkeley dizia: A matéria não é o que acreditamos, pensando que existe fora do nosso espírito. Pensamos que as coisas existem, porque as vemos, porque lhes tocamos; é porque nos dão essas sensações que acreditamos na sua existência.
Mas as nossas sensações não são mais do que ideias que temos no nosso espírito. Pelo que os objetos que percebemos através dos nossos sentidos mais não são do que ideias, e as ideias não podem existir fora do nosso espírito.
Para Berkeley, as coisas existem; não nega a sua natureza e existência, mas afirma que não existem a não ser sob a forma de sensações que no-las fazem conhecer, e conclui que as nossas sensações e os objetos são apenas uma e a mesma coisa.
As coisas existem, é certo, mas em nós, diz ele, no nosso espírito, e não têm qualquer realidade fora do espírito.
Concebemos as coisas com o auxílio da vista; percebemos, com a ajuda do tacto; o olfato esclarece-nos sobre o cheiro; o paladar, sobre o gosto; o ouvido, sobre os sons. Estas diversas sensações dão-nos ideias, que, combinadas umas com as outras, nos levam a dar-lhes um nome comum e a considerá-las como objetos.
Observamos, por exemplo, uma cor, um gosto, um cheiro, uma forma, uma consistência determinadas... Reconhecemos esse conjunto como um objeto que designamos com a palavra maçã.
Outras combinações de sensações dão-nos outras coleções de ideias que constituem aquilo a que chamamos a pedra, a árvore, o livro e os outros objetos sensíveis. (8)
Somos, pois, vítimas de ilusões quando pensamos conhecer, como exteriores, o mundo e as coisas, uma vez que tudo isso não existe a não ser no nosso espírito.
No seu livro “Diálogos de Hylas e Philonous”, Berkeley demonstra-nos esta tese da seguinte maneira: não é um absurdo pensar que uma mesma coisa, num dado momento, possa ser diferente? Por exemplo, quente e fria, no mesmo instante? Imaginai, então, que uma das vossas mãos esteja quente, a outra fria, e que ambas sejam mergulhadas, ao mesmo tempo, num recipiente cheio de água, a uma temperatura intermédia: não parecerá a água quente, a uma das mãos, e fria, à outra? (9)
Visto que é absurdo acreditar que uma coisa, ao mesmo tempo, possa ser, em si mesma, diferente, devemos concluir que tal coisa não existe a não ser no nosso espírito.
Que faz, pois, Berkeley, no seu método de raciocínio e de discussão? Despoja os objetos, as coisas de todas as suas propriedades.
Dizeis que os objetos existem porque têm uma cor, um cheiro, um sabor, porque são grandes ou pequenos, leves ou pesados? Vou demonstrar-vos que tudo isso não existe nos objetos, mas, sim, no nosso espírito.
Eis um retalho de tecido: dizeis-me que é vermelho. Será isso exato? Pensais que o vermelho faz mesmo parte do tecido. Será isso certo? Sabeis que há animais que têm olhos diferentes dos nossos e não verão vermelho esse tecido; de igual modo, um homem tendo icterícia vê-lo-á amarelo! Então, de que cor é? Isso depende, dizeis? O vermelho não está, portanto, no tecido, mas no olhar, em nós.
Dizeis que este tecido é leve? Deixai-o cair sobre uma formiga, e ela encontrá-lo-á, certamente, pesado.
Quem tem, portanto, razão? Pensais que é quente? Se estiverdes com febre, encontrá-lo-eis frio! Então, é quente ou frio?
Numa palavra, se as mesmas coisas podem ser, a um tempo, para uns, vermelhas, pesadas, quentes, e, para outros, exatamente o contrário, é porque somos vítimas de ilusões, e porque as coisas não existem para além do nosso espírito.
Retirando todas as suas propriedades aos objetos, chegamos, por conseguinte, a dizer que estes não existem a não ser no nosso pensamento, isto é, que a matéria é uma ideia.
Já, antes de Berkeley, os filósofos gregos diziam, e isso era exato, que certas qualidades, como o sabor, o som, não estavam mesmo nas coisas, mas em nós.
Porém, o que há de novo na teoria de Berkeley é, justamente, que ele alarga esta advertência a toda a espécie de objetos.
Os filósofos gregos tinham, com efeito, estabelecido entre as qualidades das coisas a seguinte distinção: por um lado, as qualidades primeiras, isto é, as que estão nos objetos, como o peso, o tamanho, a resistência etc.
Por outro, as qualidades segundas, isto é, as que estão em nós, como o cheiro, o sabor, o calor etc.
Ora, Berkeley aplica às qualidades primeiras a mesma tese que às segundas: todas as qualidades, todas as propriedades não estão nos objetos, mas em nós.
Se olharmos o sol, vemo-lo redondo, achatado, vermelho. A ciência ensina-nos que nos enganamos, que não é achatado, não é vermelho. Faremos, portanto, a abstração, com o auxílio da ciência, de certas falsas propriedades que atribuímos ao sol, mas sem, com isso, concluir que não existe! É, pois, a uma tal conclusão que Berkeley conduz.
Berkeley não teve certamente culpa, mostrando que a distinção dos antigos não resistia à análise científica, mas comete uma falta de raciocínio, um sofisma, tirando de tais observações consequências que não comportam. Mostra, com efeito, que as qualidades das coisas não são exatamente como no-las mostram os nossos
sentidos, isto é, que estes nos enganam e deformam a realidade material, e, daí, conclui, imediatamente, que a realidade material não existe.
IV. Consequências dos raciocínios idealistas
Sendo a tese: “Nada existe senão no nosso espírito”, devemos concluir que o mundo exterior não existe.
Levando este raciocínio até ao fim, chegaríamos a dizer: “Sou o único a existir, uma vez que não conheço os outros homens a não ser pelas minhas ideias, que eles não são para mim, como objetos materiais, mais do que coleções de ideias”. É o que em filosofia se chama o solipsismo (que quer dizer apenas eu).
Berkeley, diz-nos Lenine no seu livro já citado, defende-se instintivamente contra a acusação de sustentar tal teoria. Constata-se mesmo que o solipsismo, forma extrema do idealismo, não foi defendido por nenhum filósofo.
É por isso que devemos interessar-nos, discutindo com os idealistas, em tomar bem patente que os raciocínios que negam efetivamente a matéria, para serem lógicos e consequentes, devem chegar a esse extremo absurdo que é o solipsismo.
V. Os argumentos idealistas:
Dedicamos a resumir, o mais simplesmente possível, a teoria de Berkeley, porque foi quem mais abertamente expôs o que é o idealismo filosófico.
Mas é certo que, para melhor compreender estes raciocínios, que são novos para nós, é agora indispensável tomá-los muito a serio e fazer um esforço intelectual. Porquê?
Porque veremos em seguida que, se o idealismo se apresenta de uma maneira mais oculta e coberta de palavras e expressões novas, todas as filosofias idealistas mais não fazem do que retomar os argumentos do “velho Berkeley” (Lenine).
Porque veremos também quanto a filosofia idealista, que dominou, e domina ainda a história oficial da filosofia, trazendo consigo um método de pensamento de que estamos impregnados, soube penetrar-nos, apesar de uma educação inteiramente laica.
Sendo os raciocínios do bispo Berkeley a base dos argumentos de todas as filosofias idealistas, vamos, pois, para resumir este capítulo, procurar esclarecer quais são, e o que tentam demonstrar-nos.
1. O espírito cria a matéria:
Esta, sabemo-lo, a resposta idealista à pergunta fundamental da filosofia; é a primeira forma do idealismo, que se reflete nas diferentes religiões, onde se afirma que o espírito criou o mundo.
Tal afirmação pode ter dois sentidos: Ou Deus criou o mundo, e este existe, realmente à nossa volta. É o idealismo comum às teologias. (10)
Ou Deus criou a ilusão do mundo, dando-nos ideias que não correspondem a qualquer realidade material. É o “idealismo imaterialista” de Berkeley, que nos quer provar que o espírito é a única realidade, sendo a matéria um produto fabricado por este.
É por isso que os idealistas afirmam que:
2. O mundo não existe fora do nosso pensamento.
É o que Berkeley quer demonstrar-nos, afirmando que cometemos um erro, atribuindo às coisas propriedades e qualidades que lhes seriam próprias, quando estas existem apenas no nosso espírito.
Para os idealistas, os bancos e as mesas existem, na verdade, mas somente no nosso pensamento, e não em redor de nós, por que são as nossas ideias que criam as coisas. Por outras palavras, as coisas são o reflexo do nosso pensamento. Com efeito, uma vez que é o espírito que cria a ilusão da matéria, uma vez que é aquele que dá ao nosso pensamento a ideia desta; uma vez que as sensações que experimentamos perante as coisas não provêm destas em si, mas, unicamente, do nosso pensamento; a origem da realidade do mundo e das coisas é o nosso pensamento; e, por consequência, tudo o que nos rodeia não existe fora do nosso espírito, e não pode ser senão o reflexo do nosso pensamento. Mas, como, para Berkeley, o nosso espírito seria incapaz de criar, só por si, estas ideias, e, por outro lado, não faz o que quer (como aconteceria se ele próprio as criasse), é preciso admitir que é um outro espírito mais poderoso o criador. É, pois, Deus que cria o nosso espírito e nos impõe todas as ideias do mundo que aí encontramos.
Eis as principais teses sobre as quais repousam as doutrinas idealistas e as repostas que dão à pergunta fundamental da filosofia. Veremos depois qual a resposta da filosofia materialista à mesma pergunta e aos problemas suscitados por estas teses.

(8) LÉNINE: “Materialismo e empiriocriticismo”, p. 18 Ed. Avante 1982 (9) LÉNINE: “Materialismo e empiriocriticismo”, Ed. Avante 1982, BERKELEY: “Diálogos de Hylas e Philonous” LÉNINE: “Materialismo e empiriocriticismo”, pp. 17 a 29 (10) A teologia é a “ciência” (!) que se ocupa de Deus e das coisas divinas.

HÁ UMA TERCEIRA FILOSOFIA - O AGNOSTICISMO

I. Porque uma terceira filosofia? II. Argumentação desta filosofia? III. De onde vem esta filosofia? IV. As suas consequências. V. Como refutar esta “terceira” filosofia? VI. Conclusão.
I. Porque uma terceira filosofia?
Pode parecer-nos, depois, destes primeiros capítulos, que, afinal deve ser bastante fácil orientarmo-nos no meio de todos os raciocínios filosóficos, uma vez que só duas grandes dividem entre si todas as teorias: o idealismo e o materialismo. E que, além disso, os argumentos que militam em favor do materialismo dominam a convicção de maneira definitiva.
Parece, portanto, que, depois de algum exame, tenhamos encontrado o caminho que conduz a filosofia da razão: o materialismo.
Mas, as coisas não são tão simples. Como já assinalamos, os idealistas modernos não tem a franqueza do Bispo Berkeley. Apresentam as suas ideias Com muito mais artifícios, sob uma forma obscurecida pelo emprego de uma terminologia “nova”, destinada a fazê-las tomar, por pessoas ingênuas, pela filosofia “mais moderna”. (16)
Vimos que à pergunta fundamental da filosofia podem ser dadas duas respostas, totalmente opostas, contraditórias e inconciliáveis. São claras, e não permitem nenhuma confusão.
E, com efeito, até cerca de 1710, o problema era posto assim: de um lado, os que afirmavam a existência da matéria fora de nosso pensamento - eram os materialistas; do outro, os que, com Berkeley, negavam a existência da matéria, e pretendiam que esta existia apenas em nós, no nosso espírito - eram os idealistas.
Mas, nessa época, progredindo as ciências, outros filósofos intervieram, os quais tentaram desempatar idealistas e materialistas, criando uma corrente filosófica que lançasse a confusão entre essas duas teorias: tal confusão tem a sua origem na procura de uma terceira filosofia.
II. - Argumentação dessa terceira filosofia:
A base desta filosofia, elaborada depois de Berkeley, é que é inútil procurar conhecer a natureza real das coisas, e que nunca conheceremos senão as aparências.
É por isso que se chama a esta filosofia agnosticismo (do grego a, negação, e gnósticos, capaz de conhecer, portanto: “incapaz de conhecer”).
Segundo os agnósticos, não se pode saber se o mundo é, na realidade, espírito ou natureza. É-nos possível conhecer as aparências das coisas, mas não a realidade.
Retomamos o exemplo do sol. Vimos que ele não é, como pensavam os primeiros homens, um disco achatado e vermelho. Esse disco não era, portanto, mais que uma ilusão, uma aparência (a aparência é a ideia superficial que temos das coisas; não é sua realidade).
Eis porque, considerando que os idealistas e materialistas se disputam para saber se as coisas são matéria ou espírito, se existem ou não fora de nosso pensamento, se nos é possível ou não conhecê-las, os agnósticos dizem que se pode, na verdade, se conhecer a aparência, mas nunca a realidade.
Os nossos sentidos, dizem, permitem-nos ver e sentir as coisas, conhecer os aspectos exteriores, as aparências; estas aparências existem, portanto, para nós; constituem o que se chama, em linguagem filosófica, a “coisa para nós”. Mas não podemos conhecer a coisa independente de nós, com a realidade que lhe é própria, o que se chama a “coisa em si”.
Os idealistas e os materialistas, discutindo continuamente sobre esses assuntos, são comparáveis a dois homens que tivessem, um, óculos azuis, o outro, cor-de-rosa; passeariam na neve, e discutiriam para saber qual sua cor verdadeira. Suponhamos que nunca poderiam tirar os óculos. Poderão um dia conhecer a verdadeira cor da neve? Não. Pois bem, os idealistas e os materialistas, que disputam para saber qual das duas facções tem razão, trazem óculos azuis e cor-de-rosa. Nunca conhecerão a realidade. Terão um conhecimento da neve “para eles”; cada um vê-la-á à sua maneira, mas nunca a conhecerão “em si mesma”. Tal é o raciocínio dos agnósticos.
III.  De onde vem essa filosofia?
Os fundadores dessa filosofia são Hume (1711-1776), que era escocês, e Kant (1724-1804), um alemão. Ambos tentaram conciliar o idealismo e o materialismo.
Eis uma passagem dos raciocínios de Hume, citados por Lenine no seu livro “Materialismo e empiriocriticismo”:
Pode considerar-se como evidente que os homens são propensos, por instinto natural..., a fiar-se em sua opinião, e que, sem o menor raciocínio, supomos sempre a de um universo exterior, independente da nossa percepção, que existiria mesmo que fôssemos destruídos com todos os seres dotados de sensibilidade...
Mas, esta opinião primordial e universal é prontamente desacreditada pela filosofia mais superficial, que nos ensina que nada (para além da imagem ou da percepção será jamais acessível ao nosso espírito e que as sensações são apenas canais seguidos por essas imagens, não estando em condições de estabelecer, elas próprias, uma relação direta, qualquer que seja, entre o espírito e o objeto. A mesa que vemos parece-nos mais pequena quando nos afastamos, mas a mesa real, que existe independentemente de nós, não muda; o nosso espírito percebeu, portanto, apenas a imagem da mesa. Tais são as indicações evidente da razão. (17)
Vimos que Hume admite, em primeiro lugar, o que é por demais evidente: a “existência de um universo exterior” que não depende de nós. Mas, imediatamente, recusa-se a admitir tal existência como uma realidade objetiva. Para ele, não é mais que uma imagem, e os nossos sentidos, que constatam essa existência, essa imagem, são incapazes de estabelecer uma relação, qualquer que seja, entre o espírito e o objeto.
Numa palavra, vivemos no meio de coisas como no cinema, onde constatamos, na tela, as imagens dos objetos, a sua existência, mas onde, por detrás das próprias imagens, isto é, por detrás da tela, nada há.
Agora, se quisermos saber como nosso espírito tem conhecimento dos objetos, isso pode ser devido à energia da nossa própria inteligência ou à ação de qualquer espírito invisível e desconhecido, ou, então, a qualquer causa menos conhecida ainda. (18)
IV. As suas consequências:
Eis uma teoria fascinante que, aliás, está muito difundida. Encontramo-la, sob diferentes aspectos, no decorrer da história, entre as teorias filosóficas, e nos nossos dias, em todos que pretendem “ficar neutros e manter-se numa reserva cientifica”.
É-nos necessário, portanto, examinar se esses raciocínios são justos e que consequências deles resultam.
Se nos é verdadeiramente impossível, como afirmam os agnósticos, conhecer a natureza verdadeira das coisas, e se o nosso conhecimento se limita as suas aparências, não podemos pois, afirmar a existência da realidade objetiva, e saber se as coisas existem por elas próprias. Para nós, por exemplo, o automóvel é uma realidade objetiva; o agnóstico, esse diz-nos que tal não é certo, que não se pode saber se é um pensamento ou uma realidade. Interdita-nos, portanto, de sustentar que o nosso pensamento é o reflexo das coisas. Vemos que estamos em pleno raciocínio idealista, porque, entre afirmar que as coisas não existem ou, muito simplesmente, que não podemos saber se existem, a diferença não é grande!
Vimos que o agnóstico distingue as “coisas para nós” e “as coisas em si”. O estudo das coisas para nós é, pois, possível: é a ciência; mas, o estudo da coisa em si é impossível, porque não podemos conhecer o que existe fora de nos.
O resultado deste raciocínio é o seguinte: o agnóstico aceita a ciência; e, como esta só pode ser utilizada para expulsar da natureza toda força sobrenatural, é, perante ela, materialista.
Mas, apressa-se a acrescentar que a ciência, dando-nos só aparências, jamais prova, por outra via, que não haja na realidade outra coisa além da matéria, ou sequer que esta exista ou não existe Deus. A razão humana nada pode saber, e nem tem que intrometer-se. Se há outros meios para conhecer as “coisas em si” como a fé religiosa, o agnóstico não o quer saber tão pouco, e não reconhece o direito de discutir isso.
O agnóstico é, portanto, quanto à conduta da vida e à construção da ciência, um materialista que não ousa afirmar o seu materialismo, procurando, antes de tudo, não se meter em dificuldades com os idealistas, não entrar conflito com as religiões. É “um materialista envergonhado”. (19)
A consequência é que, duvidando do valor profundo da ciência, vendo nela apenas aparências, esta terceira filosofia nos propõe não atribuir nenhuma verdade à ciência e considerar como perfeitamente inútil saber qualquer coisa, tentar contribuir para o progresso.
Os agnósticos dizem: outrora, os homens viam o sol como um disco achatado, e acreditavam que era assim na realidade; enganavam-se. Hoje, a ciência diz-nos que o sol não é tal como o vemos, e pretende explicar tudo. Sabemos, portanto, que se engana muitas vezes, destruindo num dia o que construiu na véspera. Erro ontem, verdade hoje, mas erro amanhã. Assim, sustentam os agnósticos, não podemos saber; a razão não nos traz nenhuma certeza. E se outros meios além da razão, como a fé religiosa, pretendem dar-nos certezas absolutas, nem mesmo a ciência nos pode impedir de acreditar nisso. Diminuindo a confiança na ciência, o agnosticismo prepara, assim, o regresso das religiões.
V. Como refutar esta “terceira” filosofia?
Vemos que, para provar as suas afirmações, os materialistas se servem, não apenas da ciência, mas, também, da experiência, que permite controlar as ciências. Graças ao “critério da prática”, podemos saber, conhecer as coisas.
Os agnósticos dizem-nos que é impossível afirmar que o mundo exterior existe ou não.
Ora, pela prática, sabemos que o mundo e as coisas existem. Sabemos que as ideias que fazemos destas coisas são fundamentais, que as relações que estabelecemos entre elas e nós são reais.
Desde que empregamos estes objetos, em uso próprio, segundo as qualidades que neles percebemos, submetemos a uma prova infalível a exatidão ou inexatidão das nossas percepções sensoriais. Se estas são falsas, o uso dos objetos que nos sugeriram é falso; por consequência, a nossa tentativa deve falhar. Mas se logramos alcançar o nosso fim, se constatamos que nosso objeto corresponde à representação que temos dele, que dá o que esperamos da sua utilização, é a prova positiva que, no quadro destes limites, as nossas percepções do objeto e das suas qualidades concordam com a realidade fora de nós. E se, pelo contrário, falhamos, não estamos geralmente longe de descobrir a causa de nosso insucesso; achamos que a percepção que serviu de base à nossa tentativa, ou era, por si, incompleta ou superficial, ou fora ligada de uma maneira que não justificava a realidade aos dados de outras percepções. É o que chamamos um raciocínio defeituoso. É por isso, quanto mais cuidamos da educação e utilização correta dos nossos sentidos, cingindo a nossa ação aos limites prescritos pelas nossas percepções corretamente obtidas e utilizadas, mais frequentemente acharemos que o resultado de nossa ação demonstra a conformidade das nossas percepções com a natureza objetiva dos objetos percebidos. Até aqui, não há um único exemplo de que dos nossos sentidos, cientificamente controlados, tenham engendrado no nosso cérebro representações do mundo exterior que estejam, pela sua própria natureza, em desacordo com a realidade, ou que haja incompatibilidade imanente entre o mundo exterior e as percepções sensíveis que temos a esse respeito. (20)
Retomando a frase de Engels, diremos: “Só se prova que o pudim existe, comendo-o” (provérbio Inglês). Se não existisse ou fosse apenas uma ideia, depois de o ter comido, a nossa fome não estaria de modo algum apaziguada. Assim, é-nos perfeitamente possível conhecer as coisas, ver se nossas ideias correspondem a realidade. É-nos possível controlar os dados da ciência pela experiência e a destreza que traduzem, em aplicações práticas, os resultados teóricos das ciências. Se podemos fazer borracha sintética, é porque a ciência conhecia a “coisa em si” que é a borracha.
Vemos, pois, que não é inútil procurar saber quem tem razão, um vez que, através dos erros teóricos que a ciência pode cometer, a experiência nos dá cada vez mais a prova de que é na verdade a ciência que tem razão.
VI. - Conclusão
Depois do século XVIII, nos diferentes pensadores que deram maior ou menor contributo ao agnosticismo, vemos que esta filosofia é sacudida, ora pelo idealismo, ora pelo materialismo. Acoberto de palavras novas, como diz Lenine, pretendendo mesmo servir-se das ciências para apoiar os seus raciocínios, mas não fazem que criar a confusão entre as duas teorias, permitindo, assim, a alguns terem uma filosofia cômoda, que lhes dá a possibilidade de declarar que não são idealistas, porque se servem da ciência, mas que também não são materialistas, porque não ousam ir até ao fim dos seus argumentos, porque não são consequentes.
Que é, pois, o agnosticismo, diz Engels, se não um materialismo envergonhado? A concepção da natureza que o agnóstico tem é inteiramente materialista. Todo o mundo natural é governado por leis, e não admite a intervenção de uma ação exterior; mas acrescenta por precaução: “Não possuímos o meio de afirmar ou negar a existência de qualquer ser supremo para além do universo conhecido”. (21)
Esta filosofia faz, portanto, o jogo do idealismo, e, no fim das contas, porque são inconsequentes nos seus raciocínios, os agnósticos tendem para o idealismo. “Raspai o agnóstico, diz Lenine, encontrareis o idealista”.
Vimos que pode saber-se, do materialismo ou do idealismo, quem tem razão.
Vemos, agora, que as teorias que pretendem conciliar estas duas filosofias não podem, de fato, senão afirmar o idealismo, que não trazem uma terceira resposta à pergunta fundamental da filosofia, e que, por consequência, não há terceira filosofia.

(16) Lenine: “Materialismo e empiriocriticismo”, Ed. Avante 1982  (17) Idem.
(18) Idem. (19) Engels: “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, Introdução, Obras Escolhidas de Marx e Engels em três Tomos, PP. 140-149 (20) Engels: idem...
(21) Engels: idem...

ESTUDO DA METAFÍSICA
EM QUE CONSISTE O MÉTODO METAFÍSICO

I. Os caracteres deste método. 1. O Primeiro caráter: O princípio de identidade. 2. Segundo caráter: Isolamento das coisas. 3. Terceiro caráter: Divisões eternas e intransponíveis. 4. Quarto caráter: Oposição dos contrários.
II. Ajustagem. III.  A concepção metafísica da natureza. IV.  A concepção metafísica da sociedade. V.  A concepção metafísica do pensamento. VI. O que é a lógica? VII. A explicação da palavra: “metafísica”.
Sabemos que os defeitos dos materialistas do século XVIII provêm da sua forma de raciocínio, do seu método particular de pesquisa, que chamamos “método metafísico”. Este método traduz, portanto, uma concepção particular do mundo, e devemos notar que, se ao materialismo pré-marxista opomos o marxista, do mesmo modo, ao materialismo metafísico opomos o dialético.
É por isso que nos é preciso, agora, aprender o que é este método “metafísico”, para examinar, em seguida, o que é, pelo contrário, o dialético.
I. Os caracteres deste método.
O que vamos estudar aqui é esse antigo método de pesquisa e de pensamento a que Hegel chama o método “metafísico”. (43)
Começamos, imediatamente, por uma observação simples. O que é que parece mais natural à maioria das pessoas: o movimento ou a imobilidade? Qual é, para elas, o estado normal das coisas: o repouso ou a mobilidade?
Em geral, pensa-se que o repouso existia antes do movimento, e que uma coisa, para que tenha podido pôr-se em movimento, estava, primeiro, no estado de repouso.
A Bíblia também nos diz que, antes do universo, que foi criado por Deus, existia a eternidade imóvel, isto é, o repouso.
Eis palavras que empregaremos muitas vezes: repouso, imobilidade; e, também, movimento e mudança. Mas estas duas últimas não são sinônimos.
O movimento, no sentido restrito da palavra, é a deslocação. Exemplo: uma pedra que cai, um comboio em andamento estão em movimento.
A mudança, no sentido próprio da palavra, é a passagem de uma forma a outra. Exemplo: a árvore que perde as folhas mudou de forma. Mas é, também, a passagem de um estado a outro. Exemplo: o ar tornou-se irrespirável: é uma mudança.
Portanto, movimento significa mudança de lugar, e mudança significa mudança de forma ou de estado.
Procuraremos respeitar esta distinção, a fim de evitar a confusão. Quando estudarmos a dialética, seremos chamados, aliás, a rever o sentido destas palavras.
Acabamos de ver que, de uma maneira geral, se pensa que movimento e mudança são menos normais que o repouso, e é certo que temos uma espécie de preferência em considerar as coisas em repouso e sem mudança.
Exemplo: compramos um par de sapatos amarelos, e, no fim de certo tempo, depois de múltiplos concertos (substituição das solas e dos saltos, colagem de várias partes), dizemos ainda: “Vou calçar os meus sapatos amarelos”, sem darmos conta de que já não são os mesmos. Para nós, são sempre os sapatos amarelos que compramos em tal ocasião, e por que pagamos certo preço. Não consideraremos a mudança que sofreram os nossos sapatos, são sempre os mesmos, são idênticos. Desprezamos a mudança, para ver apenas a identidade, como se nada de importante tivesse acontecido. Eis o primeiro caráter do método metafísico:
1. Primeiro caráter do método metafísico: O princípio de identidade.
Consiste em preferir a imobilidade ao movimento e a identidade à mudança, em face dos acontecimentos.
Dessa preferência, que constitui o primeiro caráter deste método, resulta toda uma concepção do mundo.
Considera-se o universo como se estivesse congelado, dirá Engels. O mesmo acontece em relação à natureza, à sociedade e ao homem. Assim, afirma-se muitas vezes: “Não há nada de novo no mundo”, o que quer dizer que, desde sempre, não houve qualquer mudança, tendo o universo permanecido imóvel e idêntico. Por isso,
adquire-se, muitas vezes, a noção de um regresso periódico aos mesmos acontecimentos. Deus fez o mundo, criando os peixes, as aves, os mamíferos etc., e, depois, nada mudou, o mundo não se mexeu. Diz-se, também: “Os homens são sempre os mesmos”, como se estes, desde sempre, não tivessem mudado.
Estas expressões correntes são o reflexo da concepção que está profundamente enraizada em nós, no nosso espírito, e a burguesia explora a fundo esse erro.
Quando se critica o socialismo, um dos argumentos mais naturalmente usados é que o homem é egoísta e que, sem a intervenção de uma força que o constranja, reinaria a desordem. Esse o resultado desta concepção metafísica, que quer que o homem tenha, para todo o sempre, uma imutável natureza fixa.
É bem certo que, se, bruscamente, tivéssemos a possibilidade de viver em regime comunista, isto é, se os produtos pudessem ser repartidos imediatamente a cada um, segundo as suas necessidades e não segundo o seu trabalho, seria a corrida à satisfação dos caprichos, e tal sociedade não poderia manter-se. Mas, é por termos uma concepção metafísica em nós enraizada, que representamos o homem futuro, que viverá num futuro relativamente longínquo, como semelhante ao de hoje.
Por consequência, quando se afirma que uma sociedade socialista ou comunista não é viável porque o homem é egoísta, esquece-se que, se a sociedade muda, o homem também mudará.
O raciocínio metafísico tende, sob a mudança, a perpetuar a identidade.
Mas o que é esta identidade? Vimos construir uma casa, que ficou concluída em primeiro de janeiro de 1950, por exemplo. No primeiro de janeiro de 1951, assim como em todos os anos seguintes, diremos que está igual, porque tem sempre dois andares, vinte janelas, duas portas na fachada etc., porque permanece sempre ela mesma, não muda, não é diferente. Logo, ser idêntico é ficar o mesmo, não se tornar outro. E, no entanto, essa casa mudou! É apenas à primeira vista, superficialmente, que permaneceu a mesma. O arquiteto ou o pedreiro, que veem a coisa mais de perto, sabem bem que a casa já não é a mesma, uma semana após a sua construção: aqui, produziu-se uma pequena fenda, ali, uma pedra deu de si, além, a cor desapareceu
etc... É, pois, somente quando se consideram as coisas “no conjunto” que parecem idênticas. Na análise, em pormenor, mudam sem cessar.
Mas, quais sãos as consequências práticas do primeiro caráter do método metafísico?
Como preferimos ver a identidade nas coisas, isto é, vê-las permanecendo elas próprias, dizemos, por exemplo: “A vida é a vida, e a morte é a morte”. Afirmamos que a vida permanece a vida, que a morte fica ela própria, a morte, e é tudo.
Habituando-nos a considerar as coisas na sua identidade, separamo-las umas das outras. Dizer “uma cadeira é uma cadeira”, é uma constatação natural, mas é pôr o assento sobre a identidade, e isso quer dizer, ao mesmo tempo: o que não é uma cadeira é outra coisa.
É de tal modo natural dizer isso, que sublinhá-lo parece infantil. Pela mesma ordem de ideias, diremos: “O cavalo é o cavalo, e o que não é o cavalo é outra coisa”. Separamos, portanto, bem de um lado, a cadeira, do outro, o cavalo, e fazemos, assim, para cada coisa. Fazemos, pois, distinções, separando rigorosamente as
coisas umas das outras, e é assim que somos levados a transformar o mundo numa coleção de coisas separadas, e eis o segundo caráter do método metafísico:
2. Segundo caráter do método metafísico: Isolamento das coisas.
O que acabamos de dizer parece de tal modo natural, que pode perguntar-se: por que dizer isso? Vamos ver que, apesar de tudo, tal era necessário, porque esse sistema de raciocínio nos leva a ver as coisas sob certo ângulo.
É ainda nas consequências práticas que vamos apreciar o segundo caráter deste método.
Na vida corrente, se considerarmos os animais e raciocinarmos a seu respeito, separando os seres, não vemos o que há de comum entre os de gêneros e espécies diferentes. Um cavalo é um cavalo, uma vaca é uma vaca.
Entre eles, não há nenhuma relação.
É o ponto de vista da antiga zoologia, que classifica os animais separando-os nitidamente uns dos outros, e não vê nenhuma relação entre eles. É um dos resultados da aplicação do método metafísico.
Como outro exemplo, podemos citar o fato da burguesia querer que a ciência seja a ciência, a filosofia permaneça ela própria; do mesmo modo para a política; e, bem entendido, que não haja nada de comum, absolutamente nenhuma relação entre as três.
A conclusão prática de tal raciocínio, é que um sábio deve ficar um sábio, não misturando a sua ciência com a filosofia e com a política. Acontecerá o mesmo para o filósofo e o homem de um partido político.
Quando um homem de boa fé raciocina assim, pode dizer-se que o faz como metafísico. O escritor inglês Wells foi à antiga União Soviética, e fez uma visita ao grande escritor, hoje desaparecido, Máximo Gorki. Propôs-lhe a criação de um clube literário onde não se faria política, porque, no seu espírito, a literatura era a literatura, e a política era a política. Gorki e os seus amigos puseram-se, parece, a rir, e Wells
ficou vexado. É que este via e concebia o escritor como vivendo fora da sociedade, enquanto Gorki e os seus amigos sabiam bem que não é assim na vida, onde, na verdade, todas as coisas estão ligadas - queira-se ou não.
Na prática corrente, esforçamo-nos por classificar, isolar as coisas, vê-las, estudá-las somente por si mesmas.
Os que não são marxistas veem o Estado em geral, isolando-o da sociedade, como independente da forma desta. Raciocinar assim, isolar o Estado da sociedade é isolá-lo das suas relações com a realidade.
O mesmo erro, quando se fala do homem isolando-o dos outros, do seu meio, da sociedade. Se se considerar, também, a máquina por ela própria, isolando-a da sociedade em que produz, comete-se este erro de pensamento: “Máquina em Paris, máquina em Moscou; mais-valia, em qualquer dos casos, não há diferença, é absolutamente a mesma coisa”.
É esse, pois, um raciocínio que se pode ler continuamente, e os que o leem aceitam-no porque o ponto de vista geral e habitual é isolar, dividir as coisas. É um hábito característico do método metafísico.
3. Terceiro caráter: Divisões eternas e intransponíveis:
Depois de termos preferido considerar as coisas como imóveis e não mudando, classificamo-las, catalogamo-las, criando, assim, entre elas divisões que nos fazem esquecer as relações que podem ter umas com as outras.
Esta maneira de ver e julgar leva-nos a crer que tais divisões existem de uma vez para sempre (um cavalo é um cavalo), e que são absolutas, intransponíveis e eternas. Eis o terceiro caráter do método metafísico.
Mas, é-nos necessário prestar atenção, quando falamos deste método; porque, logo que nós, dizemos que na sociedade capitalista há duas classes, a burguesia e o proletariado, fazemos também divisões, que podem parecer assemelhar-se sob o ponto de vista metafísico. Apenas, não é simplesmente pelo fato de introduzir divisões que se é metafísico, é pela maneira, o modo como se estabelecem as diferenças, as
relações que existem entre essas divisões.
A burguesia, por exemplo, quando dizemos que há na sociedade duas classes, pensa logo que há ricos e pobres. E, bem entendido, dir-nos-á: “Sempre houve ricos e pobres”.
“Sempre houve” e “sempre haverá”, é uma maneira metafísica de raciocinar. Classifica-se para sempre as coisas independentemente umas das outras, e estabelece-se entre elas divisórias, muros intransponíveis.
Divide-se a sociedade em ricos e pobres, em vez de constatar a existência da burguesia e do proletariado, e, mesmo admitindo esta última divisão, consideramo-los fora das suas relações mútuas, isto é, da luta de classes. Quais são as consequências práticas deste terceiro caráter, que estabelece entre as coisas barreiras definitivas? É que, entre um cavalo e uma vaca, não pode haver nenhum laço de parentesco. Acontecerá o mesmo com todas as ciências e tudo o que nos rodeia. Veremos, mais adiante, se isto está certo, mas falta-nos examinar quais são as consequências dos três diferentes caracteres que acabamos de descrever, e isso será o quarto caráter:
4. Quarto caráter: Oposição dos contrários.
Deduz-se de tudo o que acabamos de ver, que, quando dizemos: “A vida é a vida, e a morte é a morte”, afirmamos que não há nada de comum entre elas. Classificamo-las bem à parte uma da outra, vendo a vida e a morte cada uma por si própria, sem ver as relações que podem existir entre si. Nestas condições, um homem que acaba de perder a vida deve ser considerado como uma coisa morta, porque é impossível que
esteja vivo e morto ao mesmo tempo, uma vez que a vida e a morte se excluem mutuamente.
Considerando as coisas como isoladas, definitivamente diferentes umas das outras, chegamos a opô-las entre si.
Eis-nos no quarto caráter do método metafísico, que opõe os contrários uns aos outros, e afirma que duas coisas opostas não podem existir ao mesmo tempo.
Com efeito, neste exemplo da vida e da morte não pode haver terceira possibilidade. É-nos absolutamente necessário escolher uma ou outra das possibilidades que distinguimos. Consideramos que uma terceira possibilidade seria uma contradição, que esta é um absurdo e, por consequência, uma impossibilidade.
O quarto caráter do método metafísico é, pois, o horror da contradição.
As consequências práticas deste raciocínio são que, quando se fala de democracia e de ditadura, por exemplo, pois bem, o ponto de vista metafísico exige que uma sociedade escolha entre as duas: porque a democracia é a democracia, e a ditadura é a ditadura. Aquela não é esta, esta não é aquela. É-nos necessário escolher, sem o que estamos em face de uma contradição, de um absurdo, de uma impossibilidade.
Pensamos que a vida, a dos seres vivos, não é possível, porque há uma luta contínua entre as células e, continuamente, umas morrem para serem substituídas por outras. Assim, a vida contém em si a morte. Pensamos que esta não é tão total e separada daquela como o pensa a metafísica, porque num cadáver não desapareceu completamente toda a vida, uma vez que certas células continuam a viver certo tempo e desse cadáver nascerão outras vidas.
II. Ajustagem.
Vemos, portanto, que os diferentes caracteres do método metafísico nos obrigam a considerar as coisas sob certo ângulo, e nos levam a raciocinar de certa maneira. Constatamos que esta maneira de analisar possui certa “lógica”, que estudaremos mais adiante, e, também, que isso corresponde muito à maneira de ver, de pensar, de estudar, de analisar que se encontra em geral.
Começa-se - e esta enumeração vai-nos permitir resumir - por:
1. Ver as coisas na sua imobilidade, na sua identidade. 2. Separar as coisas umas das outras, isolar as suas relações mútuas. 3. Estabelecer entre as coisas divisões eternas, muros intransponíveis. 4. Opor os contrários, afirmando que duas coisas contrárias não podem existir ao mesmo tempo.
Vimos, quando examinamos as consequências práticas de cada caráter, que nada disso correspondia à realidade.
É o mundo conforme a esta concepção? As coisas estão imóveis e sem mudança na natureza? Não.
Constatamos que tudo muda, e vemos o movimento. Portanto, esta concepção não está de acordo com as próprias coisas. É, evidentemente, a natureza que tem razão, e esta concepção que está errada.
Definimos, desde o princípio, a filosofia como querendo explicar o universo, o homem, a natureza etc.
Estudando as ciências os problemas particulares, a filosofia é, dissemos, o estudo dos problemas mais gerais, reunindo e prolongando as ciências.
Ora, o velho método de pensar “metafísico”, que se aplica a todos os problemas, é também uma concepção filosófica que considera o universo, o homem e a natureza de uma maneira completamente particular.
Para o metafísico, as coisas e os seus reflexos no pensamento, os conceitos são objetos de estudos isolados, a considerar um após outro e um sem o outro, fixos, rígidos, dados de uma vez para sempre. Pensa apenas em antíteses, sem meio termo. Diz: sim, sim, não, não, e o que está para além nada vale. Para ele, ou, na verdade, uma coisa exista ou não existe; uma coisa não pode ser ao mesmo tempo ela própria e outra. O positivo e o negativo excluem-se absolutamente; a causa e o efeito opõem-se de maneira completamente rígida. (44)
A concepção metafísica considera, portanto, o “universo como um conjunto de coisas congeladas”. Vamos estudar, para perceber bem esta maneira de pensar, como concebe a natureza, a sociedade, o pensamento.
III. A concepção metafísica da natureza.
A metafísica considera a natureza como um conjunto de coisas definitivamente fixas.
Mas há duas maneiras de considerar assim as coisas.
A primeira considera que o mundo está absolutamente imóvel, sendo o movimento apenas uma ilusão dos nossos sentidos. Se retiramos essa aparência de movimento, a natureza não se move.
Esta teoria foi defendida por uma escola de filósofos gregos a que chamamos os Eleatas. Concepção, simplista, está de tal modo em contradição violenta com a realidade, que já não é mantida nos nossos dias.
A segunda maneira de considerar a natureza como um conjunto de coisas congeladas é muito mais sutil.
Não se diz que a natureza está imóvel, admite-se que se move, mas, afirma-se que está animada de um movimento mecânico. Aqui, a primeira maneira desaparece; já não se nega o movimento, e isso parece não ser uma concepção metafísica. Chama-se a esta concepção “mecanicista” (ou “mecanicismo”).
Constitui um erro que se comete muitas vezes, e que encontramos entre os materialistas dos séculos XVII e XVIII. Vimos que não consideram a natureza como imóvel, mas em movimento; porém, para eles, este é simplesmente uma mudança mecânica, uma deslocação.
Admitem todo o conjunto do sistema solar (a terra gira à volta do sol), mas, pensam que tal movimento é puramente mecânico, isto é, uma mudança de lugar, e consideram-no apenas sob este aspecto.
Mas as coisas não são tão simples. Que a terra gira, é, certamente, um movimento mecânico, mas, pode, mesmo girando, sofrer influências, arrefecer, por exemplo. Não há, pois, somente uma deslocação, há, também, outras mudanças que se produzem.
O que caracteriza, portanto, esta concepção, dita “mecanicista”, é que considera unicamente o movimento mecânico.
Se a terra gira sem cessar e nada mais lhe sucede, muda de lugar, mas ela mesma não muda; fica idêntica a si própria. Mais não faz do que continuar, antes como depois de nós, a girar sempre e sempre. Assim, tudo se passa como se nada se tivesse passado. Vemos, por conseguinte, que admitir o movimento, mas fazer dele um puro movimento mecânico, é uma concepção metafísica, porque este não tem história.
Um relógio de peças perfeitas, construído com materiais que não se estragassem, trabalharia eternamente sem mudar em nada, e não teria história. É tal concepção do universo que se reencontra constantemente em Descartes. Procura ele reduzir à mecânica todas as leis físicas e fisiológicas. Não tem nenhuma ideia da química
(veja a sua explicação da circulação do sangue), e a sua concepção mecânica das coisas será, ainda, a dos materialistas do século XVIII.
(Faremos uma exceção para Diderot, que é menos puramente mecanicista, e, em certos escritos, entrevê a concepção dialética).
O que caracteriza os materialistas do século XVIII, é que fazem da natureza um mecanismo de relojoaria.
Se fosse verdadeiramente assim, as coisas voltariam continuamente ao mesmo ponto, sem deixar rastro, a natureza ficaria idêntica a si mesma, o que é, na verdade, o primeiro caráter do método metafísico.
IV. A concepção metafísica da sociedade.
A concepção metafísica pretende que nada muda na sociedade. Mas, geralmente, isso não se apresenta tal qual. Reconhecemos que se produzem mudanças, como, por exemplo, na produção, quando, a partir das matérias brutas, se produzem objetos finos, e na política, em que os governos se sucedem uns aos outros. As pessoas reconhecem tudo isso, mas consideram o regime capitalista como definitivo, eterno, e comparam-no mesmo, por vezes, a uma máquina.
É assim que se fala da máquina econômica, que por vezes se avaria, mas querem reparar, para a conservar.
Pretende-se que possa continuar a distribuir, como um aparelho automático, a uns, dividendos, a outros, a miséria.
Fala-se também da máquina política que é o regime parlamentar burguês, e pede-se-lhe apenas uma coisa: ora à esquerda, ora à direita, funcionar para conservar ao capitalismo os seus privilégios.
Eis, nesta maneira de considerar a sociedade, uma concepção mecanicista, metafísica.
Se fosse possível que tal sociedade, na qual funcionam todos estes maquinismos, prosseguisse assim a sua marcha continuamente, não deixaria vestígio, e, por consequência, seguimento na história.
Há, também, uma concepção mecanicista muito importante que vale para todo o universo, mas, sobretudo, para a sociedade, que consiste em propalar a ideia de uma marcha regular e de um regresso periódico dos mesmos acontecimentos, sob a fórmula: “a história é uma contínua repetição”.
É preciso constatar que tais concepções estão muito difundidas. Não se nega, na verdade, o movimento e a mudança, que existem e se constatam na sociedade, mas falsifica-se o próprio movimento, transformando-o em simples mecanismo.
V. A concepção metafísica do pensamento.
Qual é, à nossa volta, a concepção que se faz do pensamento?
Cremos que o pensamento humano é e foi eterno. Acreditamos que, se as coisas mudaram, a nossa maneira de raciocinar é igual à do homem que vivia há um século. Os nossos sentimentos, consideramo-los como sendo os mesmos que os dos Gregos, a bondade e o amor como tendo existido sempre; é por isso que se fala do “amor eterno”. É muito corrente acreditar que os sentimentos humanos não mudaram.
É isso que faz dizer e escrever, por exemplo, que uma sociedade não pode existir sem ter outra base além do enriquecimento individual e egoísta. É por isso que, também, se ouve muitas vezes dizer que os “desejos dos homens são sempre os mesmos”.
Pensamos muitas vezes assim. Demasiadas vezes. No movimento do pensamento, como em todos os outros, deixamos penetrar a concepção metafísica. É porque, na base da nossa educação, se encontra este método, esta maneira de pensar, que nos parece, à primeira vista, extremamente plausível, porque é a do que se chama o senso comum. (45)
Resulta disso que, esta maneira de ver, de pensar metafísica não é unicamente uma concepção do mundo, mas, também, uma maneira de proceder para pensar.
Ora, se é relativamente fácil rejeitar os raciocínios metafísicos, é, pelo contrário, mais difícil livrar-se do método de pensar metafísico. Sobre este assunto, devemos empregar uma precisão. Chamamos à maneira como vemos o universo: uma concepção; e à maneira como procuramos as explicações: um método.
Exemplos:
a) As mudanças que vemos na sociedade são só aparentes, renovam o que já foi. Eis uma “concepção”.
b) Quando se procura na história da sociedade o que já teve lugar, para concluir “não há nada de novo sobre a terra”, eis o que é o “método”.
E constatamos que a concepção inspira e determina o método. Muito evidentemente, uma vez inspirado pela concepção, o método reage por sua vez sobre esta, dirigindo-a, guiando-a.
Vimos o que é a concepção metafísica; vamos ver qual é o seu método de pesquisa. Chama-se a lógica.
VI. O que é a lógica?
Diz-se da “lógica” que é a arte de pensar bem. Pensar em conformidade com a verdade é pensar segundo as regras da lógica.
Quais são essas regras? Há três grandes regras principais, que são:
1. O princípio de identidade: é, já o vimos, a regra que quer que uma coisa seja idêntica a ela própria, não mude (o cavalo é o cavalo).
2. O princípio de não contradição: uma coisa não pode ser, ao mesmo tempo, ela própria e o seu contrário. É preciso escolher (a vida não pode ser a vida e a morte).
3. Princípio do terceiro excluído - ou exclusão do terceiro caso, o que quer dizer: entre duas possibilidades contraditórias, não há lugar para uma terceira. É preciso escolher entre a vida e a morte, não há terceira possibilidade.
Portanto, ser lógico é pensar bem. Pensar bem é não se esquecer de aplicar estas três regras.
Reconhecemos, aí, princípios que estudamos, e provenientes da concepção metafísica.
Lógica e metafísica estão, por consequência, intimamente ligadas; a lógica é um instrumento, um método de raciocínio que procede classificando cada coisa de uma maneira bem determinada, obriga, por conseguinte, a ver as coisas como sendo idênticas a elas próprias, que, em seguida, nos põe na obrigação de escolher, de
dizer sim ou não, e, em conclusão, exclui entre dois casos, a vida e a morte, por exemplo, uma terceira possibilidade.
Quando se diz: “Todos os homens são mortais; este camarada é um homem; portanto, este camarada é mortal”, temos o que se chama um silogismo (forma típica do raciocínio lógico). Determinamos, raciocinando assim, o lugar do camarada, fizemos uma classificação.
A nossa tendência de espírito, quando encontramos um homem ou uma coisa, é dizer-nos: onde é preciso classificá-lo? O nosso espírito apenas põe este único problema. Vemos as coisas como círculos ou caixas de diferentes dimensões, e a nossa preocupação é fazer entrar esses círculos ou essas caixas uns nos outros, e numa certa ordem.
No nosso exemplo determinamos, primeiro, um grande círculo que contém todos os mortais; depois, um outro mais pequeno que contém todos os homens; e, em seguida, unicamente esse camarada.
Se quisermos classificá-los, faremos, depois, segundo uma certa “lógica”, entrar os círculos uns nos outros.
A concepção metafísica é, pois, construída com a lógica e o silogismo. Um silogismo é um grupo de três proposições; as duas primeiras são chamadas premissas, o que quer dizer “enviadas antes”; e a terceira é a conclusão. Exemplo: não se faz distinção entre uma ditadura de esquerda, como em Cuba, por exemplo, com ditaduras no Chile, na Argentina e no Brasil. A ditadura é a ditadura.
Não se considera, aqui, por quem e sobre quem se exerce a ditadura, do mesmo modo que, quando se elogia a democracia burguesa, não se diz pelo proveito de quem se exerce tal democracia.
É assim que se chega a colocar os problemas, a ver as coisas e o mundo social como fazendo parte de círculos separados, e a fazê-los entrar uns nos outros.
São, certamente, questões teóricas, mas que preparam uma maneira de pensar na prática. É assim que podemos citar o infeliz exemplo da Alemanha de 1919, em que a socialdemocracia, para manter a democracia, matou a ditadura do proletariado, sem ver que, agindo desse modo, deixava subsistir o capitalismo, e dava ocasião ao nazismo.
Ver e estudar as coisas separadamente é o que fizeram a zoologia e a biologia, até ao momento em que se viu e compreendeu que existia uma evolução dos animais e das plantas. Antes, classificavam-se todos os seres, pensando que, desde sempre, as coisas tinham sido o que eram.
E, com efeito..., até ao fim do último século, a ciência da natureza foi, sobretudo, uma ciência de acumulação, uma ciência de coisas feitas de uma vez para sempre. (46)
Mas, para terminar, é preciso darmos a explicação da palavra metafísica.
VII. A explicação da palavra: “metafísica”.
Há na filosofia uma parte importante que se chama metafísica. Mas, só tem tal importância na filosofia burguesa, uma vez que se ocupa de Deus e da alma. Tudo aí é eterno. Deus é eterno, não mudando, permanecendo igual a si mesmo; a alma também. O mesmo acontece com o bem, o mal etc., estando tudo isso nitidamente definido, definitivo e eterno.
Nesta parte da filosofia que se chama à metafísica, veem-se, pois, as coisas como um conjunto congelado, e procede-se, no raciocínio, por oposição: opõe-se o espírito à matéria, o bem ao mal etc., isto é, raciocinasse por oposição dos contrários entre eles.
Chama-se tal maneira de raciocinar, de pensar, a esta concepção: “metafísica”, porque trata das coisas e das ideias que se encontram fora da física, como Deus, a bondade, a alma, o mal etc. “Metafísica vem do grego meta, que quer dizer para além”, e de física, ciência dos fenômenos do mundo. Portanto, a metafísica ocupa-se de coisas situadas para além do mundo.
É também por causa de um acidente histórico que esta concepção filosófica se chama “metafísica”.
Aristóteles, que fez o primeiro tratado de lógica (aquele de que nos servimos ainda), escreveu muito. Depois da sua morte, os discípulos classificaram-lhe os escritos; fizeram um catálogo e, depois de um manuscrito intitulado “Física”, encontraram outro sem título, que tratava das coisas do espírito. Classificaram-no, chamando-o Depois da física, em grego: “Metafísica”.
Concluímos, insistindo na ligação que existe entre os três termos que estudamos:
A metafísica, o mecanicismo, a lógica. Estas três disciplinas apresentam-se sempre juntas, e atraem-se entre si. Formam um sistema, não podendo compreender-se uma sem as outras.

(43) Friedrich ENGELS: “Ludwig Fuerbach”. (44) Friedrich ENGELS: “Anti-Dühring”. (45) Friedrich ENGELS: “Anti-Duhring”. (46) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach”.

O MATERIALISMO FILOSÓFICO
A MATÉRIA E OS MATERIALISTAS

I. O que é a matéria? II. Teorias sucessivas da matéria. III. O que é a matéria para os materialistas. IV. O espaço, o tempo, o movimento e a matéria. V. Conclusão.
Depois de ter definido: primeiro, as ideias comuns a todos os materialistas, em seguida, os seus argumentos contra as filosofias idealistas, e, por último, demonstrado o erro do agnosticismo, vamos tirar as conclusões deste ensino e reforçar nossos argumentos materialistas, trazendo as nossas respostas às duas perguntas seguintes:
1. O que é a matéria? 2. Que significa ser materialista?
I. O que é matéria?
Importância da pergunta. Cada vez que temos um problema a resolver, devemos pôr as perguntas bem claramente. Com efeito, aqui, não é tão simples dar uma resposta satisfatória. Para conseguir isso, devemos fazer uma teoria da matéria.
Em geral, as pessoas pensam que a matéria é o que pode ser tocado, o que é resistente e duro. Na antiguidade grega, era assim que se definia a matéria.
Hoje, sabemos, graças às ciências, que isso não é exato.
II. Teorias sucessivas da matéria.
(O nosso objetivo é passar em revista, o mais simplesmente possível, as diversas teorias relativas à matéria, sem entrar em explicações científicas).
Na Grécia, pensava-se que a matéria era uma realidade cheia e impenetrável, que, até o infinito, não podia dividir-se. Chega um momento, dizia-se, em que partículas são indivisíveis; e, a tais partículas, deu-se o nome de átomos (átomo igual a indivisível). Uma mesa é, então, um aglomerado de átomos. Pensava-se, também, que esses átomos eram diferentes uns dos outros: havia os lisos e redondos, como os do azeite, e os rugosos e curvos, como os do vinagre.
Foi Demócrito, um materialista da antiguidade, que pôs de pé esta teoria: foi ele que, primeiro, tentou dar uma explicação materialista do mundo. Pensava, por exemplo, que o corpo humano era composto por átomos grosseiros, que a alma era um aglomerado de átomos mais finos e, como admitia a existência dos deuses, e quisesse explicar tudo como materialista, afirmava que os próprios deuses eram compostos por átomos extrafinos.
No século XIX, esta teoria modificou-se profundamente.
Pensava-se sempre que a matéria se dividia em átomos que estes eram partículas muito duras atraindo-se umas as outras. Abandona-se a teoria, dos Gregos, e os átomos já não eram curvos ou lisos, mas continuava a sustentar-se que eram impenetráveis, indivisíveis e sofriam um movimento de atração uns contra os outros.
Hoje, demonstra-se que o átomo não é um grão de matéria impenetrável e insecável (Isto é, indivisível), mas que se compõe de partículas denominadas elétrons girando a enorme velocidade à volta de um núcleo, onde se encontra condensada a quase totalidade da massa do átomo. Se este é neutro, elétrons e núcleo, tem uma carga elétrica, mas a carga positiva do núcleo é igual a soma das cargas negativas transportadas pelos elétrons. A matéria é um aglomerado desses átomos, e se opõe uma resistência à penetração é precisamente por causa do movimento das partículas que a compõem.
A descoberta destas propriedades elétricas da matéria e, em particular, a dos elétrons provocou, no princípio do século XX, um assalto dos idealistas contra a própria existência da matéria.
“O elétron não tem nada de material, pretendiam eles. É apenas uma carga elétrica em movimento. Se não há matéria na carga negativa, por que haveria no núcleo positivo? Portanto, a matéria deixou de existir. Só há energia”.
Lênin, em “Materialismo e empiriocriticismo” (cap. V), repôs as coisas no seu devido lugar, mostrando que energia e matéria são inseparáveis. A energia é material, e o movimento é apenas o modo de existência da matéria. Em suma, os idealistas interpretavam ao contrário as descobertas da ciência. No momento em que esta punha em evidência aspectos da matéria ignorados até então, concluíam que a matéria não existe, sob pretexto de que não é semelhante à ideia que dela se fazia outrora, quando se acreditava que matéria e movimento eram duas realidades distintas. (22)
III. O que é matéria para os materialistas
Sobre este assunto, é indispensável fazer uma distinção. Trata-se de ver em primeiro lugar:
1. O que é a matéria? Depois, 2. Como é a matéria?
A resposta que os materialistas dão a primeira pergunta é que a matéria é uma realidade exterior, independente do espírito, e que não necessita deste para existir. Lênin diz, a propósito: A noção de matéria exprime apenas a realidade objetiva que nos é dada na sensação. (23)
Quanto à segunda pergunta: “como é a matéria?” os materialistas dizem: “Não é a nós que compete responder, é a ciência”.
A primeira resposta não mudou da antiguidade aos nossos dias.
A segunda mudou e deve mudar, por que depende das ciências, do estado do conhecimento humano. Não é uma resposta definitiva.
Vemos que é absolutamente indispensável pôr bem o problema e não deixar os idealistas misturar as duas perguntas. É preciso separá-las bem, mostrar que a primeira é a principal e que nossa resposta ao assunto é, desde sempre invariável.
Porque, a única “propriedade” da matéria cuja admissão definiu o materialismo filosófico é ser uma realidade objetiva, existir fora de nossa consciência. (24)
IV. O espaço, o tempo, o movimento e a matéria.
Se afirmamos, porque o constatamos, que a matéria existe fora de nós, afirmamos também:
1. Que a matéria existe no tempo e no espaço. 2. Que a matéria está em movimento.
Os idealistas, esses pensam que o espaço e o tempo são ideias de nosso espírito (é Kant quem, primeiro, tal defendeu). Para eles, o espaço é uma forma que damos às coisas, nasceu do espírito do homem. O mesmo acontece com relação ao tempo.
Os materialistas afirmam, pelo contrário, que o espaço não está em nós, nos é que estamos nele. Afirmam, também, que o tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento de nossa vida; e que, por consequência, o tempo e o espaço são inseparáveis do que existe fora de nós, isto é, da matéria.
(...) As formas fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do tempo é um absurdo tão grande como um ser fora do espaço. (25)
Pensamos, portanto, que há uma realidade independente da consciência. Acreditamos que o mundo existiu antes de nós e que, depois de nós, continuará a existir. Acreditamos que o mundo, para existir, não precisa de nós. Estamos persuadidos que Paris existiu antes de nascermos e, a menos que seja definitivamente arrasada, existirá depois de nossa morte. Estamos certos que Paris existe, mesmo quando não pensamos nisso, do mesmo modo que há dezenas de milhares de cidades que nunca visitamos, de que nem sequer sabemos o nome, e que, todavia, existem. Tal é a convicção geral da humanidade. As ciências permitiram dar a este argumento uma precisão e uma firmeza que aniquilam as astúcias idealistas.
As ciências da natureza afirmam positivamente que a terra existiu em estados tais, que nem o homem, nem nenhum ser vivo a habitava, nem podia habitar. A matéria orgânica é um fenômeno tardio, o produto de uma evolução muito longa. (26)
Se as ciências nos fornecem, portanto, a prova de que a matéria existe no tempo e no espaço, ensinam-nos ao mesmo tempo, que está em movimento. Esta última afirmação, que as ciências modernas nos forneceram, é muito importante, porque destruiu a velha teoria segundo a qual a matéria seria incapaz de movimento, inerte.
O movimento é o modo de existência da matéria... A matéria sem movimento é tão inconcebível como o movimento sem matéria. (27)
Sabemos que o mundo, no seu estado atual, é o resultado, em todos os domínios, de uma longa evolução e, por consequência, de um movimento lento, mas continuo. Esclarecemos, portanto, depois de ter demonstrado à existência da matéria, que o universo é apenas matéria em movimento, e esta matéria em movimento só se pode mover no espaço e no tempo. (28)
V. Conclusão
Resulta destas constatações que, a ideia de Deus, a ideia de um “puro espírito” criador do universo não tem sentido, porque um Deus fora do espaço e do tempo é qualquer coisa que não pode existir.
É preciso participar da mística idealista, por consequência, não admitir nenhum controle científico, para acreditar num Deus fora do tempo, isto é, não existindo em nenhum momento, e existindo fora do espaço, ou seja, não existindo em parte alguma.
Os materialistas, seguros das conclusões das ciências, afirmam que a matéria existe no espaço e num dado momento (no tempo). Por consequência, o universo não pôde ser criado, porque teria sido preciso a Deus, para poder criar o mundo, um momento que não existiu em nenhum momento (uma vez que o tempo para Deus não existe), e seria preciso, também, que de nada saísse o mundo.
Para admitir a criação, é preciso, pois, admitir, em primeiro lugar, que houve um momento em que o universo não existia, depois, que do nada saiu qualquer coisa, o que a ciência não pode admitir.
Vemos que os argumentos dos idealistas, confrontados com as ciências, não podem manter-se, enquanto que o dos filósofos materialistas não podem ser separadas das próprias ciências. Sublinhamos assim, uma vez mais, as relações íntimas que ligam o materialismo e as ciências.

(22) A II parte deste capítulo foi refeita com a ajuda de Luce Langevin e Jean Orcei. Sobre o progresso realizado depois do século no estudo da estrutura da matéria, ver F, Joi-iot- Curie: “Textos escolhidos” Edições sociais, PP.85-89. (23) Lênin: “Materialismo e empiriocriticismo”, Ed. Avante 1982. (24) Lênin: “Materialismo e empiriocriticismo”, Ed. Avante 1982 (25) Friedrich Engels: “Anti-Duhring”, Edições Sociais, 1956, p.84 (26) Lênin: “Materialismo e empirocriticismo”. Ed. Avante, 1982 (27) Friedrich Engels: “Anti-Duhring”, p.92
(28) Lênin: “Materialismo e Empirocriticismo”, Ed, Avante 1982.

O MATERIALISMO FILOSÓFICO
HISTÓRIA DO MATERIALISMO

I. Necessidade de estudar essa história.
II. O materialismo pré-marxista: 1. A antiguidade grega. 2. O materialismo inglês. 3. O materialismo na França. 4. O materialismo no século XVIII.
III. De onde vem o idealismo? IV. De onde vem a religião? V. Os méritos do materialismo pré-marxista. VI. Os defeitos do materialismo pré-marxista.
Estudamos, até aqui, o que é o materialismo em geral e quais são as ideias comuns a todos os materialistas.
Vamos ver, agora, como evoluiu desde a antiguidade, até chegar ao materialismo moderno. Em poucas palavras, vamos seguir rapidamente a história do materialismo.
Não temos a pretensão de explicar, em tão poucas páginas, os 2000 anos de história do materialismo; queremos, simplesmente, dar indicações gerais, que guiarão as leituras.
Para estudar bem, mesmo sumariamente, essa história, é indispensável ver, a cada instante, porque razão as coisas se desenrolaram assim. Mais valeria não citar certos nomes históricos, do que não aplicar este método.
Mas, mesmo não querendo sobrecarregar o cérebro dos nossos leitores, pensamos que é necessário nomear, por ordem histórica, os principais filósofos materialistas mais ou menos seus conhecidos.
É por isso que, para simplificar o trabalho, vamos consagrar estas primeiras páginas ao lado puramente histórico, pois, na segunda parte deste capítulo, veremos porque é que a evolução do materialismo teve que suportar a forma de desenvolvimento que conheceu.
I. Necessidade de estudar essa história. II. A burguesia não gosta da história do materialismo, e é por isso que, ensinada nos livros burgueses, é inteiramente incompleta e sempre falsa. Empregam-se diversos processos de falsificação:
1. Não podendo ignorar os grandes pensadores materialistas, nomeiam-nos falando de tudo o que escreveram, salvo dos seus estudos materialistas, e se esquecem de dizer que são filósofos materialistas.
Há muitos destes casos de esquecimento na história da filosofia, tal como é ensinada nos liceus ou na Universidade, e citaremos, como exemplo, Diderot, que foi o maior pensador materialista antes de Marx e Engels.
2. Houve, no decurso da história, numerosos pensadores que foram materialistas sem o saber, ou inconsequentes. Quer dizer, em alguns dos seus escritos, eram materialistas, noutros, idealistas: Descartes, por exemplo.
Ora, a história escrita pela burguesia deixa na sombra tudo o que, nesses pensadores, tem, não somente influenciado o materialismo, mas dado origem a toda uma corrente desta filosofia.
3. Portanto, se estes dois processos de falsificação não conseguem camuflar certos autores, suprimem-nos, pura e simplesmente.
É assim que se ensina a história da literatura e da filosofia do século XVIII, ignorando d'Holbach e Helvétius, que foram grandes pensadores dessa época.
Por que é assim? Porque a história do materialismo é particularmente instrutiva para conhecer e compreender os problemas do mundo; e, também, porque o desenvolvimento do materialismo é funesto às ideologias que sustentam os privilégios das classes dirigentes.
São estas as razões pelas quais a burguesia apresenta o materialismo como uma doutrina que, congelada desde há vinte séculos, não mudou, quando, pelo contrário, o materialismo foi qualquer coisa de vivo e sempre em movimento.
Tal como o idealismo passou por toda uma série de fases de desenvolvimento, o mesmo acontece com o materialismo. Com cada descoberta que faz época no domínio das ciências naturais, é-lhe necessário modificar a sua forma. (29)
Compreendemos agora melhor a necessidade de estudar, mesmo sumariamente, essa história do materialismo. Para o fazer, devemos distinguir dois períodos: 1°, da origem (antiguidade grega) até Marx e Engels; 2°, do materialismo de Marx e Engels aos nossos dias. (Estudaremos esta segunda parte com o materialismo dialético).
Chamamos ao primeiro período “materialismo pré-marxista” e ao segundo “materialismo marxista”, ou “materialismo dialético”.
II. O materialismo pré-marxista.
1.  A antiguidade grega.
Recordamos que o materialismo é uma doutrina que esteve sempre ligada às ciências, que evoluiu e progrediu com elas. Logo que, na antiguidade grega, nos séculos IV e V antes da nossa era, as ciências começaram a manifestar-se com os “físicos”, forma-se, nesse momento, uma corrente materialista que atrai os melhores pensadores e filósofos dessa época (Tales, Anaxímenes, Heráclito). Esses primeiros filósofos serão, como disse Engels, “naturalmente dialéticos”. Ficam realmente surpreendidos por acharem em tudo o movimento, a mudança, e que as coisas não estão isoladas, mas intimamente ligadas umas às outras. Heráclito, a quem se chama o “pai da dialética”, dizia: Nada é imóvel; tudo corre; nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, porque ele nunca é, em dois momentos sucessivos, o mesmo: de um momento ao outro, mudou; tornou-se outro.
Heráclito, o primeiro, procura explicar o movimento, a mudança, e vê na contradição as razões da evolução das coisas.
As concepções destes primeiros filósofos estavam certas, e se foram abandonadas foi porque tinham o senão de serem formuladas à priori, isto é, o estado das ciências dessa época não permitia provar o que eles antecipavam. Por outro lado, as condições sociais necessárias ao desenvolvimento da dialética (veremos, mais adiante, quais são) não estavam ainda realizadas.
É só muito mais tarde, no século XX, que as condições (sociais e intelectuais), permitindo às ciências provar a exatidão da dialética, serão realizadas.
Outros pensadores gregos tiveram concepções materialistas: Leucipo (século V antes da nossa era), que foi o mestre de Demócrito, discutia já esse problema dos átomos de que vimos a teoria estabelecida por este último.
Epicuro (341-270 antes da nossa era), discípulo de Demócrito, é um grande pensador cuja filosofia foi completamente falsificada pela Igreja, na Idade Média. Por antipatia ao materialismo filosófico, esta apresentou a doutrina epicurista como uma doutrina profundamente imoral, como uma apologia das mais baixas paixões. Na realidade, Epicuro era um asceta, e a sua filosofia visa dar um fundamento científico (portanto antirreligioso) à vida humana.
Todos esses filósofos tinham consciência de que a filosofia estava ligada ao destino da humanidade, e constatamos já, por parte deles, uma oposição à teoria oficial; oposição entre o idealismo e o materialismo.
Mas um grande pensador domina a Grécia antiga: é Aristóteles, que era acima de tudo idealista. A sua influência foi considerável. E é por isso que devemos citá-lo muito particularmente. Organizou o inventário dos conhecimentos humanos dessa época, cheio das lacunas criadas pelas ciências novas. Espírito universal, ele escreveu numerosos livros, sobre todos os assuntos. Pela universalidade do seu saber, de que retivemos apenas as tendências idealistas, negligenciando os seus aspectos materialistas e científicos, teve sobre as concepções filosóficas uma influência considerável até ao fim da Idade Média, isto é, durante vinte séculos.
Durante todo este período, seguiu-se, pois, a tradição antiga, e pensava-se apenas por Aristóteles. Uma repressão selvagem procedia cruelmente contra os que pensavam de maneira diferente. Apesar de tudo, pelo fim da Idade Média, uma luta se estabeleceu entre os idealistas que negavam a matéria e os que pensavam que existia uma realidade material.
Nos séculos XI e XII, esta disputa prosseguiu na França e, sobretudo, na Inglaterra.
De início, é principalmente neste último país que o materialismo se desenvolve. Marx disse: O materialismo é o verdadeiro filho da Grã-Bretanha. (30)
Um pouco mais tarde, é na França que o materialismo se expandirá. Em todo o caso, vemos, nos séculos XV e XVI, manifestarem-se duas correntes: uma, o materialismo inglês, a outra, o materialismo francês, cuja reunião contribuirá para o prodigioso desenvolvimento do materialismo no século XVIII.
2. O materialismo inglês:
O autêntico pai do materialismo inglês e de toda a ciência experimental moderna é Bacon. A ciência da natureza é, aos seus olhos, a verdadeira ciência, e a física, baseada na experiência sensível, é a parte fundamental mais nobre. (31)
Bacon é célebre como fundador do método experimental no estudo das ciências. O importante, para ele, é estudar a ciência no “grande livro da natureza”, e isso é particularmente interessante numa época em que se estuda a ciência nos livros que Aristóteles deixara alguns anos antes.
Para estudar a física, por exemplo, eis como se procedia sobre certo assunto, tomava-se as passagens escritas por Aristóteles; em seguida, pegava-se os livros de S. Tomás de Aquino, que era um grande teólogo, e lia-se o que este último escrevera sobre a passagem de Aristóteles. O professor não fazia comentário pessoal, ainda menos dizia o que pensava, mas reportava-se a uma terceira obra, que repetia Aristóteles e S. Tomás. Era isto a ciência da Idade Média, a que se chamou escolástica: era uma ciência livresca, porque se estudava somente nos livros.
É contra esta escolástica, este ensinamento congelado, que Bacon reagiu, chamando a estudar no “grande livro da natureza”.
Nessa época, uma pergunta se punha:
De onde vêm as nossas ideias? De onde vêm os nossos conhecimentos? Cada um de nós tem ideias, a ideia de casa, por exemplo. Esta ocorre-nos porque há casas, dizem os materialistas. Os idealistas pensam que é Deus que nos dá a ideia de casa. Bacon, esse dizia que a ideia apenas existia porque se viam ou tocavam as coisas, mas não podia ainda demonstrá-lo.
É Locke (1632-1704) que tentou demonstrar como as ideias provêm da experiência. Mostrou que todas vêm da experiência, e que só esta nos dá aquelas. A ideia da primeira mesa veio ao homem antes que ela existisse, porque, pela experiência, se servia já de um tronco de árvore ou de uma pedra como mesa.
Com as ideias de Locke, entra em França, na primeira metade do século XVIII, o materialismo inglês, porque, enquanto esta filosofia se desenvolvia de um modo particular na Inglaterra, aparecera uma corrente materialista em França.
3. O materialismo na França:
Pode situar-se a partir de Descartes (1596-1650) o nascimento na França de uma corrente nitidamente materialista. Descartes teve uma grande influência nesta filosofia, mas, em geral, não se fala nisso!
Nessa época em que a ideologia feudal estava muito viva, até nas ciências, em que se estudava de modo escolástico, como vimos, Descartes entra em luta contra tal estado de coisas.
A ideologia feudal está impregnada de mentalidade religiosa. Considera, portanto, que a Igreja, representando Deus na terra, tem o monopólio da verdade. Resulta disso que nenhum homem pode pretender a verdade, se não subordina o seu pensamento aos ensinamentos da Igreja. Descartes rebate os argumentos desta concepção. Não se opõe, certamente, à Igreja como tal, mas professa ousadamente que todo o homem,
crente ou não, pode chegar à verdade pelo exercício da razão (a luz natural).
Descartes declara desde o princípio do seu “Discurso do método”: “O bom senso é a coisa mais bem dividida do mundo”. Por consequência, toda a gente, perante a ciência, tem os mesmo direitos. E se faz, por exemplo, uma boa crítica da medicina do seu tempo (o “Doente imaginário”, de Molière, é um eco das críticas de Descartes), é porque quer fazer uma ciência que seja verdadeira, baseada no estudo da natureza e
rejeitando a ensinada até ele, em que Aristóteles e S. Tomás eram os únicos “argumentos”.
Descartes vivia no começo do século XVII; no século seguinte, a Revolução ia rebentar, e é por isso que se pode dizer dele que sai de um mundo que vai desaparecer, para entrar num mundo novo, naquele que vai nascer. Esta posição faz com que Descartes seja um conciliador; quer criar uma ciência materialista e, ao
mesmo tempo, é idealista, porque quer salvar a religião.
Quando, na sua época, se perguntava: por que há animais que vivem? Respondia-se, segundo as respostas definitivas da teologia: porque há um princípio que os faz viver. Descartes, pelo contrário, sustentava que as leis da vida animal são simplesmente da matéria. Acreditava, aliás, e afirmava que os animais são apenas máquinas de carne e músculos, como as outras máquinas são de ferro e madeira. Pensava mesmo que uns e outras não tinham sensações, e quando, na abadia de Port-Royal, durante as semanas de estudos, homens que se valiam da sua filosofia picavam cães, diziam: “Como a natureza está bem feita, dir-se-ia que sofrem!...”.
Para o Descartes materialista, os animais eram, portanto, máquinas. Mas o homem, esse é diferente, porque tem uma alma, diz o Descartes idealista...
Das ideias desenvolvidas e defendidas por Descartes, vão nascer, por um lado, uma corrente filosófica nitidamente materialista e, por outro, uma idealista.
Entre os que continuam o ramo cartesiano materialista, retemos La Mettrie (1709-1751). Retomando essa tese do animal-máquina, estende-a até ao homem.
Por que não seria este uma máquina?... A própria alma humana, vê-a como uma mecânica em que as ideias seriam movimentos mecânicos.
É nessa época que penetra na França, com as ideias de Locke, o materialismo inglês. Da junção dessas duas correntes vai nascer um materialismo mais evoluído. Será:
4. O materialismo do século XVIII.
Este materialismo foi defendido por filósofos que souberam também ser lutadores e escritores admiráveis; criticando continuamente as instituições sociais e a religião, aplicando a teoria à prática, e sempre em luta com o poder, foram, por vezes, encerrados na Bastilha ou em Vincennes.
Foram eles que reuniram os seus trabalhos na grande “Enciclopédia”, onde fixam a nova orientação do materialismo. Tiveram, aliás, uma grande influência, uma vez que esta filosofia era, como o diz Engels, “a condição de toda a juventude culta”.
Foi mesmo, na história da filosofia na França, a única época em que uma filosofia, tendo um caráter francês, se tornou verdadeiramente popular.
Diderot, nascido em Langres, em 1713, morto em Paris, em 1784, domina todo esse movimento. O que é preciso dizer, antes de tudo, e que a história burguesa não refere, é que foi, antes de Marx e Engels, o maior pensador materialista. Diderot, disse Lenine, chega quase às conclusões do materialismo contemporâneo (dialético).
Foi um verdadeiro militante; sempre em luta contra a Igreja, contra o estado social, conheceu os cárceres. A história escrita pela burguesia contemporânea suprimiu-o muito. Mas é preciso ler “Conversas de Diderot e d'Alembert”, “Sobrinho de Rameau”, “Jaime, o fatalista” para compreender a enorme influência de Diderot
sobre o materialismo. (32)
Na primeira metade do século XIX, por causa dos acontecimentos históricos, constatamos um retrocesso do materialismo. A burguesia de todos os países faz uma grande propaganda em favor do idealismo e da religião, porque, não só já não quer que se propaguem as ideias progressistas (materialistas), mas, ainda, precisa adormecer os pensadores e as massas, para se manter no poder.
É então que vemos, na Alemanha, Feuerbach afirmar, no meio de todos os filósofos idealistas, as suas convicções materialistas, repondo, solidamente, de novo o materialismo no trono. (33)
Desenvolvendo essencialmente uma crítica da religião, retoma, de uma maneira justa e atual, as bases do materialismo, que tinham sido esquecidas, e influencia, assim, os filósofos da sua época.
Chegamos ao período do século XIX em que se constata um progresso enorme nas ciências, devido, particularmente, a estas três grandes descobertas: a célula viva, a transformação da energia, a evolução (de Darwin), (34) que vão permitir a Marx e Engels, influenciados por Feuerbach, fazer evoluir o materialismo, para nos dar o materialismo moderno, ou dialético.
Acabamos de ver, de um modo inteiramente sumário, a história do materialismo antes de Marx e Engels.
Sabemos que, se estavam de acordo com os materialistas que os precederam sobre numerosos pontos comuns, julgaram também, pelo contrário, que a Obra destes apresentava numerosos defeitos e lacunas.
Para compreender as transformações por eles trazidas ao materialismo pré-marxista é, portanto, absolutamente necessário investigar quais foram esses defeitos e lacunas, e porque foi assim.
Por outras palavras, o nosso estudo da história do materialismo ficaria incompleto se, depois de enumerar os diferentes pensadores que contribuíram para fazer progredir o materialismo, não procurássemos saber como e em que sentido se efetuou esse avanço, e porque razão sofreu esta ou aquela forma de evolução.
Interessamo-nos particularmente pelo materialismo do século XVIII, porque foi o resultado das diferentes correntes desta filosofia.
Vamos, pois, estudar quais eram os erros desse materialismo, quais foram as suas lacunas, porém, como nunca devemos ver as coisas de um modo unilateral, mas, pelo contrário, no seu conjunto, sublinharemos, também, quais foram os seus méritos.
O materialismo, dialético nas suas origens, não pôde continuar a desenvolver-se nessas bases. O raciocínio dialético, por causa da insuficiência dos conhecimentos científicos, teve que ser abandonado. Era preciso, primeiro, criar e desenvolver as ciências.
Era preciso saber, primeiro, o que era esta ou aquela coisa, antes de poder estudar os processos. (35)
É, portanto, a união muito íntima do materialismo e da ciência que permitirá a esta filosofia voltar a ser de novo, em bases mais sólidas e científicas, o materialismo dialético, o de Marx e Engels.
Encontraremos, pois, o ato de nascimento do materialismo ao lado do da ciência. Mas, se reconhecemos sempre de onde vem o materialismo, devemos estabelecer, também, de onde vem o idealismo.
III. De onde vem o idealismo?
Se, no decurso da história, o idealismo pôde existir ao lado da religião, tolerado e aprovado por ela, é um fato que nasceu e provém da religião.
Lenine escreveu, a esse respeito, uma fórmula que devemos estudar: “O idealismo não é mais do que uma forma apurada e refinada da religião”. O que é que isso quer dizer? Isto: o idealismo sabe apresentar as suas concepções muito mais agilmente do que a religião. Esta pretende que o universo foi criado por um espírito que pairava sobre as trevas, que Deus é imaterial, para depois, bruscamente, declarar que fala (pelo Verbo) e tem um filho (Jesus); é esta uma série de ideias apresentadas brutalmente.
O idealismo, afirmando que o mundo existe apenas no nosso pensamento, no nosso espírito, apresenta-se de uma maneira mais sutil. De fato, sabemo-lo, vem tudo a dar na mesma, quanto ao fundamento, mas a forma é menos brutal, mais elegante. É por isso que o idealismo é uma forma mais apurada da religião.
Também é refinada, porque os filósofos idealistas sabem, nas discussões, prever as perguntas, estender as armadilhas, como Philonous ao pobre Hylas, nos diálogos de Berkeley.
Mas dizer que o idealismo provém da religião é simplesmente afastar o problema, e devemos perguntar imediatamente:
IV. De onde vem a religião?
Engels deu-nos, sobre este assunto, uma resposta muito clara: “A religião nasce das concepções restritas do homem”. (Restrito é tomado, aqui, no sentido de limitado). Para os primeiros homens, esta ignorância é dupla: ignorância da natureza, ignorância deles próprios. É preciso pensar constantemente nessa dupla ignorância, quando se estuda a história dos homens primitivos.
Na antiguidade grega, que consideramos já como uma civilização avançada, tal ignorância parece-nos infantil, por exemplo, quando se vê que Aristóteles pensava que a terra era imóvel, que era o centro do mundo, e à sua volta giravam planetas. (Estes, que via em número de 46, estavam fixos, como pregos num teto, e era esse conjunto que girava à volta da terra...).
Os Gregos pensavam, também, que havia quatro elementos: a água, a terra, o ar e o fogo, e que não era possível decompô-los. Sabemos que tudo isso é falso, uma vez que decompomos, agora, a água, a terra e o ar, não considerando o fogo como um corpo da mesma ordem.
Acerca do próprio homem, os Gregos eram também muito ignorantes, uma vez que não conheciam a função dos nossos órgãos, e consideravam, por exemplo, o coração como o centro da coragem!
Se a ignorância dos sábios gregos, que consideramos já como mais avançados, era tão grande, como seria, então, a dos homens que viveram milhares de anos antes deles? As concepções que os homens primitivos tinham da natureza e deles próprios eram limitadas pela ignorância. Mas tentavam, apesar de tudo, explicar as coisas. Todos os documentos que possuímos sobre os homens primitivos dizem-nos que estavam muito preocupados com os sonhos. Vimos, desde o primeiro capítulo, como tinham resolvido este problema dos sonhos pela crença na existência de um “duplo” do homem. No início, atribuíam a esse duplo uma espécie de corpo transparente e leve, com uma consistência ainda material. Só muito mais tarde, nascerá no seu
espírito a concepção de que o homem tem nele um princípio imaterial, que lhe sobrevive, um princípio espiritual (a palavra vem de espírito, que, em latim, quer dizer sopro, o sopro que se vai com o último suspiro, quando se entrega a alma a Deus, só subsistindo o “duplo”). É, então, a alma que explica o pensamento, o sonho.
Na idade média, tinha-se concepções bizarras sobre a alma. Pensava-se que, num corpo gordo, havia uma alma diminuta e, num corpo franzino, uma grande alma; é por isso que, nessa época, os ascetas faziam longos e frequentes jejuns, para ter uma grande alma, fazer uma morada grande para ela.
Admitindo, sob a forma do duplo transparente, depois sob a da alma, princípio espiritual, a sobrevivência do homem após a morte, os homens primitivos criaram os deuses.
Acreditando, primeiramente, em seres mais poderosos do que os homens, existindo sob uma forma ainda material, chegaram, insensivelmente, à crença em deuses, existindo sob a forma de uma alma superior à nossa. E é deste modo que, depois de ter criado uma multidão de deuses, cada um com a sua função definida, como na antiguidade grega, chegaram à concepção de um só Deus. Então, foi criada a religião monoteísta (36) atual. Assim, vemos que, na origem da religião, mesmo sob a sua forma atual, esteve à ignorância.
O idealismo nasce, pois, das concepções limitadas do homem, da sua ignorância; enquanto que o materialismo, pelo contrário, do recuo desses limites.
Vamos assistir, no decurso da história da filosofia, a essa luta contínua entre o idealismo e o materialismo. Este quer fazer recuar as fronteiras da ignorância, e isto será uma das suas glórias e um dos seus méritos. O idealismo, pelo contrário, e a religião que o alimenta fazem todos os esforços para manter a ignorância e tirar proveito desta ignorância das massas, para lhes fazer admitir a opressão, a exploração econômica e social.
V. Os méritos do materialismo pré-marxista.
Vimos nascer o materialismo entre os Gregos, desde que existe um embrião de ciência. Segundo este princípio que: quando a ciência se desenvolve, se desenvolve o materialismo, constatamos, no decorrer da história:
1. Na Idade Média, um fraco desenvolvimento das ciências, uma estagnação do materialismo.
2. Nos séculos XVII e XVIII, a um enorme desenvolvimento das ciências corresponde um grande desenvolvimento do materialismo. O materialismo francês do século XVIII é a consequência direta do seu desenvolvimento.
3. No século XIX, assistimos a numerosas e grandes descobertas, e o materialismo sofre uma grande transformação com Marx e Engels.
4. Hoje, as ciências progridem enormemente e, ao mesmo tempo, o materialismo. Veem-se os melhores sábios aplicar nos seus trabalhos o materialismo dialético.
O idealismo e o materialismo têm, portanto, origens completamente opostas; e constatamos, no decurso dos séculos, uma luta entre estas duas filosofias, que dura ainda nos nossos dias, e não foi apenas acadêmica.
Esta luta que, através da história da humanidade, se trava entre a ciência e a ignorância é a luta entre duas correntes. Uma atira a humanidade para a ignorância, mantendo-a nela; a outra, pelo contrário, aspira à libertação dos homens, substituindo a ignorância pela ciência.
Tal luta tomou, algumas vezes, formas graves, como no tempo da Inquisição, em que podemos tomar, entre outros, o exemplo de Galileu. Este afirmou que a terra girava. Era um conhecimento novo, que estava em contradição com a Bíblia e, também, com Aristóteles: se a terra gira, é porque não é o centro do mundo, mas, simplesmente, um ponto nele, e, então, é preciso alargar as fronteiras dos nossos pensamentos. Que se fez, então, perante essa descoberta de Galileu?
Para manter a humanidade na ignorância, foi instituído um tribunal religioso, e Galileu condenado a retratar se publicamente. Eis um exemplo da luta entre a ignorância e a ciência.
Devemos, pois, julgar os filósofos e os sábios dessa época situando-os nesta luta da ignorância contra a ciência, e constataremos que, defendendo a ciência, defendiam o materialismo, sem eles próprios o saberem.
Assim, Descartes, pelos seus raciocínios, forneceu ideias que puderam fazer progredir o materialismo.
É necessário ver, também, que esta luta no decurso da história não é simplesmente teórica, mas social e política. As classes dominantes nesta batalha estão sempre do lado da ignorância. A ciência é revolucionária, contribuindo para a libertação da humanidade.
O caso da burguesia é típico. No século XVIII, a burguesia é dominada pela classe feudal; nesse momento, ela é a favor das ciências; conduz a luta contra a ignorância, e dá-nos a “Enciclopédia”. (37) No século XX, a burguesia é a classe dominante, e, nesta luta contra a ignorância e a ciência, é pela ignorância, com uma ferocidade muito maior do que antes (lembrai-vos do nazismo).
Vemos, portanto, que o materialismo pré-marxista representou um papel considerável, e teve uma importância histórica muito grande. No decurso desta luta entre a ignorância e a ciência, soube desenvolver uma concepção geral do mundo que pôde ser oposta à religião, à ignorância, portanto. É graças, também, à evolução do materialismo, a esta sucessão dos seus trabalhos, que as condições indispensáveis à eclosão do materialismo dialético foram realizadas.
VI. Os defeitos do materialismo pré-marxista.
Para compreender a evolução do materialismo, ver bem os seus defeitos e lacunas, é preciso não esquecer nunca que ciência e materialismo estão ligados.
No princípio, o materialismo estava adiantado às ciências, e é por isso que esta filosofia não pôde afirmar-se subitamente. Era preciso criar e desenvolver as ciências, para provar que o materialismo dialético tinha razão; mas isso levou mais de vinte séculos. Durante esse longo período, o materialismo sofreu a influência das ciências e, especialmente, a do espírito das ciências, assim como a das ciências particulares mais
desenvolvidas.
É por isso que o materialismo do século precedente (isto é, do século XVIII) era, antes de tudo, mecanicista, porque, nessa época de todas as ciências naturais, só a mecânica, e ainda apenas a dos corpos sólidos, celestes e terrestres, numa palavra, a mecânica da gravidade, chegara a certa perfeição. A química ainda só existia na sua forma infantil, flogística (fluido que os antigos químicos supunham inerente a todos os corpos e que, segundo acreditavam, produzia a combustão ao abandonar esses corpos. A teoria do flogístico, desenvolvida no séc. XVIII, sobretudo por Stahl, foi definitivamente refutada por Lavoisier). A biologia estava ainda nos começos; o organismo vegetal e animal apenas tinham sido estudados grosseiramente, explicado por causas puramente mecânicas; para os materialistas do século XVIII, o homem era uma máquina, tal como o animal para Descartes. (38)
Eis, pois, o que era o materialismo resultante de uma longa e lenta evolução das ciências, depois do período “hibernal da Idade Média cristã”.
O grande erro, nesse período, foi considerar o mundo como uma grande mecânica, julgar todas as coisas segundo as leis da ciência que se chama mecânica. Considerando o movimento como um simples movimento mecânico, pensava-se que os mesmos acontecimentos deviam reproduzir-se continuamente. Via-se o lado
máquina das coisas, mas não o lado vivo. Também se chama a este materialismo: mecânico (ou mecanicista).
Vejamos um exemplo: Como explicavam esses materialistas o pensamento? Desta maneira: “o cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis”! É um pouco simplista! O materialismo de Marx, pelo contrário, dá uma série de precisões. Os nossos pensamentos não provêm unicamente do cérebro. É preciso ver porque temos certos pensamentos, certas ideias, primeiro que outros; repara-se, então, que a sociedade, o ambiente etc., selecionam as nossas ideias. O materialismo mecânico considera o pensamento como um simples fenômeno mecânico. Ora, ele é bem mais!
Esta aplicação exclusiva da mecânica a fenômenos de natureza química e orgânica, no âmbito dos quais as leis mecânicas atuaram, sem dúvida, também, mas postas em segundo plano por leis de ordem superior, constitui um acanhamento específico, mas inevitável nessa época do materialismo francês clássico. (39)
Eis o primeiro grande erro do materialismo do século XVIII.
As suas consequências eram ignorar a história em geral, isto é, o ponto de vista do desenvolvimento histórico, do progresso: tal materialismo considerava que o mundo não evolui e volta, com intervalos regulares, a estados semelhantes, jamais concebendo uma evolução do homem e dos animais.
Esse materialismo... na sua incapacidade para considerar o mundo no que respeita ao progresso, à matéria ajustada num desenvolvimento histórico... correspondia ao nível que tinham atingido na época as ciências naturais e ao modo metafísico. (40) Isto é, antidialético de filosofar que daí resultava. Sabia-se que a natureza estava empenhada num movimento perpétuo, mas este, segundo a concepção da época, descrevia também um círculo perpétuo, nunca mudando, por consequência, de lugar; produzia sempre os mesmos resultados. (41)
Eis o segundo defeito desse materialismo.
O seu terceiro erro, é que era muito contemplativo; não via suficientemente o papel da ação humana no mundo e na sociedade. O materialismo de Marx ensina que não devemos apenas explicar o mundo, mas transformá-lo. O homem é, na história, um elemento ativo que pode trazer mudanças ao mundo.
O materialismo pré-marxista não tinha consciência desta concepção da ação do homem. Pensava-se, nessa época, que era um produto do meio (42), enquanto que Marx nos ensina que o meio é um produto do homem, sendo este, portanto, um produto da sua própria atividade, em certas condições dadas à partida. Se o homem
sofre a influência do meio, pode transformá-lo, ou seja, a sociedade; pode, pois, por consequência, transformar-se a si mesmo.
O materialismo do século XVIII era, portanto, muito contemplativo, porque ignorava o desenvolvimento histórico de todas as coisas, e isso era então inevitável, uma vez que os conhecimentos científicos não estavam bastante avançados para conceber o mundo e as coisas de outro modo que não fosse através do velho método de pensar: metafísico.

LEITURAS: MARX e ENGELS: “A Sagrada Família”, em Estudos filosóficos.
MARX: “Teses sobre Feuerbach”, Obras Escolhidas de Marx e Engels em 3 Tomos, Tomo I, p.1, Ed. Avante PLÉKHANOV: “Ensaios sobre a história do materialismo” (d'Holbach, Helvétius, Marx). Edições sociais, 1957. (29) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Obras Escolhidas de Marx e Engels em Três Tomos, Ed. Avante 1985, Tomo III, pp 375-421 (30) MARX-ENGELS: “A Sagrada Família”, Estudos filosóficos, Edições sociais, 1961. (31) ENGELS: “Do Socialismo utópico ao socialismo cientifico”, Introdução, Obras Escolhidas de Marx e Engels em três Tomos, pp. 104-149 (33) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach” (34) Idem, (35) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach” (36) Do grego monos: um só — e thêos: deus. (37) Ver “Páginas escolhidas da Enciclopédia”. Os Clássicos do povo, Edições sociais. (38) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach”.

ESTUDO DA DIALÉTICA
INSTRUÇÃO AO ESTUDO DA DIALÉTICA

I. Precauções preliminares. II. De onde nasceu o método dialético? III. Por que foi a dialética, durante muito tempo, dominada pela concepção metafísica? IV. Por que era metafísico o materialismo do século XVIII? V. Como nasceu o materialismo dialético: Hegel e Marx.
I. Precauções preliminares
Quando se fala da dialética, é, por vezes, com mistério e apresentando-a como qualquer coisa de complicado.
Conhecendo mal o que é, fala-se dela, também, a torto e a direito. Tudo isso é lamentável, e faz cometer erros que é preciso evitar.
Tomado no seu sentido etimológico, o termo dialética significa, simplesmente, a arte de discutir, e é assim que se ouve, muitas vezes, dizer de um homem que discute longamente, e mesmo também, por extensão, daquele que fala bem: é um dialético!
Não é nesse sentido que vamos estudar a dialética. Tomou, sob o ponto de vista filosófico, uma significação especial.
A dialética, no sentido filosófico, contrariamente ao que se pensa, está ao alcance de todos, porque é uma coisa muito clara e sem mistério.
Mas, se pode ser compreendida por toda a gente, tem, todavia, as suas dificuldades; e, eis como devemos compreendê-las.
Entre os trabalhos manuais, alguns são simples, outros, mais complicados. Fazer caixas de embalagem, por exemplo, é um trabalho simples. Montar um aparelho de T.S.F., pelo contrário, representa um trabalho que requer muita habilidade, precisão, agilidade dos dedos.
As mãos e os dedos são para nós instrumentos de trabalho. Mas o pensamento também o é. E se os dedos não fazem sempre um trabalho de precisão, o mesmo acontece com o nosso cérebro.
Na história do trabalho humano, o homem, no início, apenas sabia fazer trabalhos grosseiros. O progresso nas ciências permitiu trabalhos mais precisos.
Acontece exatamente o mesmo com a história do pensamento. A metafísica é esse método de pensamento que apenas é capaz, como os nossos dedos, de movimentos grosseiros (como pregar caixotes ou puxar as gavetas da metafísica).
A dialética difere deste método, porque permite uma maior precisão. É apenas um método de pensamento de grande precisão.
A evolução do pensamento foi a mesma que a do trabalho manual. É a mesma história, não havendo nenhum mistério: tudo é claro nesta evolução.
As dificuldades que encontramos provêm de que, até há vinte e cinco anos, pregamos caixotes, e, subitamente, nos colocam em frente dos aparelhos de T.S.F. para fazer a montagem. É certo que teremos grandes dificuldades, que as nossas mãos serão pesadas, os dedos inábeis. Só pouco a pouco conseguiremos suavizar-nos e realizar esse trabalho. O que era muito difícil no princípio, parecer-nos-á, depois, mais simples. Para a dialética, é a mesma coisa. Estamos embaraçados, de erros pelo antigo método de pensamento metafísico, e devemos adquirir a maleabilidade, a precisão do método dialético. Mas, vemos que, ainda aí, nada há de misterioso nem de muito complicado.
II. De onde nasceu o método dialético?
Sabemos que a metafísica considera o mundo como um conjunto de coisas congeladas, e, ao contrário, se olharmos a natureza, vemos que tudo se move, tudo muda. Constatamos a mesma coisa com o pensamento.
Resulta desta constatação, portanto, um desacordo entre a metafísica e a realidade. É por isso que, para definir de uma maneira simples e dar uma ideia essencial, se pode dizer: quem diz “metafísica” diz “imobilidade”, e quem diz “dialética” diz “movimento”.
O movimento e a mudança, que existem em tudo o que nos rodeia, estão na base da dialética.
Quando submetemos ao exame do pensamento a natureza ou a história da humanidade, ou a nossa própria atividade mental, o que se nos oferece, em primeiro lugar, é o quadro de uma confusão infinita de relações, de ações e reações, onde nada permanece o que era, onde era, como era, onde tudo se move, se transforma, vem a ser e passa. (47)
Vemos, depois deste texto tão claro de Engels, que, do ponto de vista dialético, tudo muda, nada fica onde está, nada permanece o que é, e, por consequência, tal ponto de vista está em perfeito acordo com a realidade. Nenhuma coisa permanece no lugar que ocupa, uma vez que mesmo o que nos aparece como imóvel se move; move-se com o movimento da terra em volta do sol; e no movimento da terra sobre ela mesma. Na metafísica, o princípio de identidade quer que uma coisa permaneça ela própria. Vemos, pelo contrário, que nenhuma coisa permanece o que é.
Temos a impressão de ficar sempre os mesmos, e, portanto, diz-nos Engels, “os mesmos são diferentes”.
Pensamos ser iguais e já mudamos. Da criança que éramos, tornamos homem, e este, fisicamente, jamais fica o mesmo: envelhece todos os dias.
Não é, pois, o movimento que é a aparência enganadora, como o sustentavam os Eleatas, é a imobilidade, visto que, de fato, tudo se move e tudo muda.
A história também nos prova que as coisas não permanecem o que são. Em nenhum momento a sociedade está imóvel. Primeiramente, houve, na antiguidade, a sociedade  escravocrata, sucedeu-lhe a feudal, depois a capitalista. O estudo dessas sociedades mostra-nos que, continuamente, insensivelmente, os elementos que permitiram o nascimento de uma sociedade nova desenvolveram-se nelas. E, é por isso que os metafísicos não compreendem o que é essa mudança. Continuam a julgar uma sociedade transformada, como era antes, com os seus sentimentos de homens sofrendo ainda a opressão.
Os nossos próprios sentimentos se transformam, coisa de que mal nos apercebemos. Vemos o que era apenas uma simpatia transformar-se em amor, depois degenerar, algumas vezes, em ódio.
O que vemos por toda a parte, na natureza, na história, no pensamento, é a mudança e o movimento. É por esta constatação que começa a dialética.
Os Gregos impressionaram-se pelo fato de se encontrar por toda a parte a mudança e o movimento. Vimos que Heráclito, o chamado “pai da dialética”, foi o primeiro a dar-nos uma concepção dialética do mundo, isto é, descreveu-o em movimento e não congelado. A maneira de ver de Heráclito pode tornar-se um método.
Mas este método dialético não pôde afirmar-se senão muito mais tarde, e é-nos necessário ver porque razão a dialética foi muito tempo dominada pela concepção metafísica.
III. Por que foi a dialética, durante muito tempo, dominada pela concepção metafísica?
Vimos que a concepção dialética nascera muito cedo na história, mas que os conhecimentos insuficientes dos homens permitiram à concepção metafísica desenvolver-se e passar à frente da dialética.
Podemos fazer aqui um paralelo entre o idealismo, que nasceu da grande ignorância dos homens, e a concepção metafísica, que nasceu dos conhecimentos insuficientes da dialética.
Como e por que foi isso possível?
Os homens começaram o estudo da natureza num estado de completa ignorância. Para estudar os fenômenos que constatam, começam por classificá-los. Mas, da maneira de classificar resulta um hábito do espírito. Ao criar categorias, e separando-as umas das outras, o nosso espírito habitua-se a efetuar tais separações, e voltamos a encontrar aí os primeiros caracteres do método metafísico. É, pois, na verdade, da insuficiência do desenvolvimento das ciências que sai a metafísica. Ainda há 150 anos, se estudava as ciências separando-as umas das outras. Estudava-se à parte a química, a física, a biologia, por exemplo, e não se via entre elas qualquer relação. Continuava-se, também, a aplicar esse método no interior das ciências: a física estudava o som, o calor, o magnetismo, a eletricidade etc., e pensava-se que estes diferentes fenômenos não tinham qualquer relação entre si; estudava-se cada um deles em capítulos separados.
Na verdade, reconhecemos, aí, o segundo caráter da metafísica, que quer que se desconheçam as relações das coisas e nada haja de comum entre elas.
Do mesmo modo, é mais fácil conceber as coisas no estado de repouso do que em movimento. Tomemos como exemplo a fotografia: vemos que, em primeiro lugar, se procura fixar as coisas na sua imobilidade (é a fotografia), depois, somente pela sequência, no seu movimento (é o cinema). Pois bem! A imagem da fotografia e do cinema é a do desenvolvimento das ciências e do espírito humano. Estudamos as coisas em repouso, antes de as estudar no seu movimento.
E isso por quê? Porque não se sabia. Para aprender, tomou-se o ponto de vista mais fácil; as coisas imóveis são mais fáceis de perceber e estudar. Certamente, o estudo das coisas em repouso é um momento necessário do pensamento dialético - mas só um momento, insuficiente, fragmentário, e que é preciso integrar no estudo das coisas em transformação.  
Encontramos esse estado de espírito na biologia, por exemplo, no estudo da zoologia e da botânica. Porque não se conheciam bem, classificaram-se, primeiro, os animais em raças, espécies, pensando que entre elas não havia nada de comum e que fora sempre assim (terceiro caráter da metafísica). Ê daí que vem a teoria a que se chama o “fixismo” (que afirma, contrariamente ao “evolucionismo”, que as espécies animais foram sempre o que são, que nunca evoluíram), que é, por conseguinte, uma teoria metafísica, proveniente da ignorância dos homens.
IV. Por que era metafísico o materialismo do século XVlll?
Sabemos que a mecânica desempenhou um grande papel no materialismo do século XVIII e que este é muitas vezes chamado o “materialismo mecanicista”. Por que aconteceu assim? Porque a concepção materialista está ligada ao desenvolvimento de todas as ciências e, entre estas, foi a mecânica que se desenvolveu primeiro. Na linguagem corrente, a mecânica é o estudo das máquinas; em linguagem científica, o do movimento no que respeita a deslocação. E se a mecânica foi a ciência que primeiro se desenvolveu, é porque o movimento mecânico é o mais simples. Estudar o movimento de uma maçã que balança ao vento, num pomar, é muito mais fácil do que estudar a mudança que se produz na maçã que amadurece. Pode estudar-se mais facilmente o efeito do vento sobre a maçã do que a sua maturação. Mas este estudo é
“parcial”, abrindo, assim, a porta à metafísica.
Muito embora observem que tudo é movimento, os antigos Gregos não podem tirar partido de tal observação, porque o seu saber é insuficiente. Então, observam-se as coisas e os fenômenos, classificam-se, contentam-se em estudar a deslocação, daí a mecânica; e a insuficiência dos conhecimentos nas ciências dá origem à concepção metafísica.
Sabemos que o materialismo é sempre baseado nas ciências e que, no século XVIII, a ciência era dominada pelo espírito metafísico. De todas, a mais desenvolvida nessa época era a mecânica.
É por isso que era inevitável, dirá Engels, que o materialismo do século XVIII fosse um materialismo metafísico e mecanicista, porque as ciências eram assim.
Diremos, portanto, que o materialismo metafísico e mecanicista era materialista, porque respondia à pergunta fundamental da filosofia - o fator primeiro é a matéria -, mas era metafísico, porque considerava o universo como um conjunto de coisas congeladas e mecânicas, porque estudava e via todas as coisas através da mecânica.
Virá um dia em que se chegará, por acumulação das pesquisas, a constatar que as ciências não são imóveis; aperceber-se-á que, nelas, se produziram transformações. Depois de ter separado a química da biologia e da física, dar-se-á conta de que se torna impossível tratar qualquer delas sem ter de recorrer às outras. Por exemplo, o estudo da digestão, que é do domínio da biologia, torna-se impossível sem a química. No século XIX, aperceber-se-á, pois, que as ciências estão ligadas entre si, e resultará um retrocesso do espírito metafísico nas ciências, porque se terá um conhecimento mais aprofundado da natureza. Até lá, tinha-se estudado os fenômenos da física separadamente; agora, era-se obrigado a constatar que todos esses fenômenos eram da mesma natureza. É assim que a eletricidade e o magnetismo, que se estudavam
separadamente, estão reunidos hoje numa ciência única: o eletromagnetismo.
Ao estudar os fenômenos do som e do calor, descobriu-se, do mesmo modo, que ambos eram provenientes de um fenômeno da mesma natureza.
Batendo com um martelo, obtém-se um som e produz-se calor. É o movimento que produz calor. E sabemos que o som provém de vibrações no ar, também estas são movimento. Portanto, eis dois fenômenos da mesma natureza.
Em biologia, chegou-se, classificando cada vez mais minuciosamente, a encontrar espécies que não se podiam classificar, nem como vegetais, nem como animais. Não havia, pois, separação brusca entre uns e outros. Desenvolvendo-se sempre os estudos, chegou-se a concluir que os animais não foram sempre o que são. Os fatos têm condenado o fixismo e o espírito metafísico.
Foi no decurso do século XIX que se produziu esta transformação que acabamos de ver, e que permitiu ao materialismo tornar-se dialético. A dialética é o espírito das ciências que, ao desenvolver-se, abandonaram a concepção metafísica. O materialismo pôde transformar-se, porque as ciências mudaram. Às ciências metafísicas corresponde o materialismo metafísico, e às novas um materialismo novo, o dialético.
V. Como nasceu o materialismo dialético - Hegel e Marx.
Se perguntarmos como se operou essa transformação do materialismo metafísico em dialético, responde-se geralmente dizendo:
1. Havia o materialismo metafísico, o do século XVIII;
2. As ciências mudaram;
3. Marx e Engels intervieram; separaram o materialismo metafísico em dois; abandonando a metafísica, ficaram com o materialismo, juntando-lhe a dialética.
Se temos tendência em apresentar as coisas assim, isso provém do método metafísico, que quer que simplifiquemos as coisas, para fazer um esquema. Devemos, pelo contrário, ter sempre bem presente que jamais os fatos da realidade devem ser esquematizados. Os fatos são mais complicados do que parecem, do que pensamos. Pelo que não há uma transformação tão simples do materialismo metafísico em dialético.
A dialética foi, de fato, desenvolvida por um filósofo idealista alemão, Hegel (1770-1831), que soube compreender a mudança operada nas ciências. Retomando a velha ideia de Heráclito, constatou, ajudado pelos progressos científicos, que, no Universo, tudo é movimento e mudança, nada está isolado, mas tudo depende de tudo, criando, deste modo, a dialética. É a propósito de Hegel que falamos hoje de movimento dialético do mundo. O que Hegel compreendeu primeiro foi o movimento do pensamento, e, naturalmente, chamou-lhe dialético.
Mas Hegel é idealista, isto é, dá a importância primeira ao espírito, e, por consequência, faz do movimento e da mudança uma concepção particular. Pensa que são as mudanças do espírito que provocam as da matéria.
Para Hegel, o universo é a ideia materializada, e, antes dele, existe primeiramente o espírito que descobre o universo. Em resumo, constata que o espírito e o universo estão em perpétua mudança, mas, daí, conclui que as mudanças do espírito determinam as da matéria.
Exemplo: o inventor tem uma ideia, realiza-a, e é esta, materializada, que cria mudanças na matéria.
Hegel é, pois, na verdade, dialético, mas subordina a dialética ao idealismo.
É então que Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), discípulos de Hegel, mas discípulos materialistas, e dando, por consequência, a importância primeira à matéria, pensam que a sua dialética dá afirmações exatas, mas ao contrário. Engels dirá, a este respeito: com Hegel a dialética conservava-se na cabeça, era preciso repô-la nos pés. Marx e Engels transferem, portanto, para a realidade material a causa inicial desse movimento do pensamento definido por Hegel, e chamam-no, naturalmente, dialético, servindo-se daquele seu mesmo termo.
Pensam que tem razão para dizer que o pensamento e o universo estão em perpétua mudança, mas se engana, afirmando que são as mudanças das ideias que determinam as das coisas. São, pelo contrário, estas que nos dão aquelas, e as ideias modificam-se porque as coisas se modificam.
Outrora, viajava-se em diligência. Hoje, de trem e avião. Não é por termos a ideia de viajar de trem ou avião, que este meio de locomoção existe. As nossas ideias modificaram-se, porque se modificam as coisas.

Devemos, pois, evitar dizer: “Marx e Engels possuíam, por um lado, o materialismo resultante do materialismo francês do século XVIII, por outro, a dialética de Hegel; por consequência, apenas tinham que os juntar um ao outro”.
É uma concepção simplista, esquemática, que esquece que os fenômenos são mais complicados; é uma concepção metafísica.
Marx e Engels tomarão, na verdade, a dialética a Hegel, mas transformá-la-ão. Farão o mesmo do materialismo, para nos dar o materialismo dialético.
(47) Friedrich Engels: “Anti-Dühring”.

solon santos yahoo com br - Ligeira formatação do apanhado filosófico de Valdir Pereira do Grupo Socialismo Facebook, a respeito dos princípios elementares de filosofia do materialismo dialético, de Marx e Engels.

Consulte a parte II deste curso, logo abaixo.