MATERIALISMO VERSUS IDEALISMO II

AS LEIS DA DIALÉTICA

PRIMEIRA LEI: A MUDANÇA DIALÉTICA

I. O que se entende pelo movimento dialético. II. Para a dialética, não existe nada de definitivo, de absoluto, de sagrado... (Engels) III. O processo.
I.  O que se entende pelo movimento dialético.
A primeira lei da dialética começa por constatar que “nada fica onde está, nada permanece o que é”. Quem diz dialética diz movimento, mudança. Por conseguinte, quando se fala de se colocar no ponto de vista da dialética, isso quer dizer colocar-se no do movimento, da mudança: quando quisermos estudar as coisas segundo a dialética, estudá-las-emos nos seus movimentos, na sua mudança.
Eis uma maçã. Temos duas maneiras de estudá-la: por um lado, do ponto de vista metafísico, por outro, do dialético.
No primeiro caso, daremos uma descrição desse fruto, a sua forma, a sua cor. Enumeraremos as suas propriedades, falaremos do seu gosto etc. Depois, poderemos comparar a maçã com uma pera, ver as semelhanças, as diferenças e, enfim, concluir: uma maçã é uma maçã, e uma pera é uma pera. Era assim que se estudavam as coisas outrora, numerosos livros testemunham-no.
Mas se queremos estudar a maçã do ponto de vista dialético, colocar-nos-emos no do movimento; não do movimento da maçã quando rola e se desloca, mas do ponto de vista de sua evolução. Então, constataremos que a maçã madura não foi sempre o que é. Primeiramente, era uma maçã verde. Antes de ser uma flor, era um botão; e, assim, chegaremos até ao estado da macieira na primavera. A maçã não foi, pois, sempre uma maçã, tem uma história; e, de fato, não permanecerá o que é. Se cai, apodrecerá, decompor-se-á, libertará as sementes, que darão, se tudo correr bem, um rebento, depois uma árvore. Portanto, a maçã não foi e também não ficará sempre o que é.
Eis o que se chama estudar as coisas do ponto de vista do movimento. É o estudo do ponto de vista do passado e do futuro. Ao estudar assim, já não se vê a maçã presente senão como uma transição entre o que era, o passado, e o que se tornará, o futuro.
Para situar bem esta maneira de ver as coisas, vamos, ainda, tomar dois exemplos: a Terra e a sociedade.
Colocando-nos no ponto de vista metafísico, descreveremos a forma da Terra em todos os seus detalhes.
Constataremos que, na sua superfície, há mares, terras, montanhas; estudaremos a natureza do solo. Depois, poderemos comparar a terra aos outros planetas ou à lua, e concluiremos, enfim: a Terra é a Terra.
Enquanto que ao estudar a história da Terra do ponto de vista dialético, veremos que não foi sempre o que é, sofreu transformações e, por conseguinte, sofrerá, no futuro, de novo, outras mais. Devemos, portanto, considerar hoje que o estado atual da Terra é apenas uma transição entre as mudanças passadas e as futuras.
Transição na qual as mudanças que se efetuam são imperceptíveis, embora sejam a uma escala muito maior do que as que se efetuam na maturação da maçã.
Vejamos, agora, o exemplo da sociedade, que nos interessa particularmente. Apliquemos sempre os dois métodos: do ponto de vista metafísico, dir-nos-ão que houve sempre ricos e pobres. Constataremos que há grandes bancos, fábricas enormes. Dar-nos-ão uma descrição detalhada da sociedade capitalista, que compararemos com as sociedades passadas (feudal, escravocrata), procurando as
semelhanças ou as diferenças, e diremos: a sociedade capitalista é o que é.
Do ponto de vista dialético, aprenderemos que a sociedade capitalista não foi sempre o que é. Se constatarmos que, no passado, outras sociedades viveram certo tempo, será para deduzir que a capitalista, como todas as outras, não é definitiva, não tem base intangível, mas, pelo contrário, é para nós apenas uma realidade provisória, uma transição entre o passado e o futuro.
Vemos, por alguns destes exemplos, que considerar as coisas do ponto de vista dialético é considerar cada coisa como provisória, como tendo uma história no passado, e devendo ter outra no futuro, tendo um começo, e devendo ter um fim...
II. Para a dialética, não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado...
Para a dialética, não há nada de definitivo, de absoluto, de sagrado; apresenta a caducidade de todas as coisas e em todas as coisas, e, para ela, nada existe além do processo ininterrupto do devir e do transitório. (48)
Eis uma definição que sublinha o que acabamos de ver, e que vamos estudar. Para a dialética, não há nada de definitivo. Isto quer dizer que tudo tem um passado e terá um futuro; que, por conseguinte, nada é de uma vez para sempre, e o que é hoje não é definitivo (exemplos da maçã, da Terra, da sociedade).
Para a dialética, não existe nenhum poder no mundo, nem para além dele, que possa fixar as coisas num estado definitivo, portanto, “nada de absoluto”. (Absoluto significa: que não está submetido a qualquer condição; por conseguinte, universal, eterno, perfeito).
“Nada de sagrado”, isto não quer dizer que a dialética despreze tudo. Não! Uma coisa sagrada é aquela que se considera como imutável, que não se deve nem tocar nem discutir, mas só venerar. A sociedade capitalista é “sagrada”, por exemplo. Pois bem! A dialética diz que nada escapa ao movimento, à mudança, às transformações da história.
“Caducidade” vem de “caduco”, que significa: que cai; uma coisa caduca é a que envelhece e deve desaparecer. A dialética mostra-nos que o que está caduco já não tem razão de ser, que tudo está destinado a desaparecer. O que é jovem torna-se velho; o que hoje tem vida morre amanhã, e nada existe, para a dialética, “além do processo ininterrupto do devir e do transitório”.
Portanto, colocar-se do ponto de vista dialético é considerar que nada é eterno, salvo a mudança. É considerar que nenhuma coisa particular pode ser eterna, senão o “devir”.
Mas, o que é o “devir” de que Engels fala na sua definição?
Vimos que a maçã tem uma história. Tomemos agora, por exemplo, um lápis, que também tem a sua.
Este lápis, que hoje está usado, foi novo. A madeira de que é feito sai de uma prancha, e esta de uma árvore.
Vemos, pois, que a maçã e o lápis têm cada um a sua história, e, uma e outro, não foram sempre o que são.
Mas, há uma diferença entre essas duas histórias? Certamente!
A maçã verde tornou-se madura. Podia, sendo verde, se tudo corresse bem, não se tornar madura? Não, devia amadurecer, assim como, caindo à terra, deve apodrecer, decompor-se, libertar as sementes.
Enquanto que a árvore de onde vem o lápis pode não se tornar prancha, e esta não se tornar lápis. Este pode, ele próprio, ficar sempre inteiro, não ser afiado.
Constatamos, portanto, entre estas duas histórias, uma diferença. No caso da maçã, é a maçã verde que se tornou madura, se nada de anormal se produziu, e é a flor que se tornou maçã. Por conseguinte, a uma dada fase, outra se segue necessariamente, inevitavelmente (se nada parar a evolução).
Na história do lápis, pelo contrário, a árvore pode não se tornar prancha, esta não se tornar lápis, este não ser afiado. Logo, a uma dada fase, pode não se seguir a outra. Se a história do lápis percorre todas essas fases, é graças a uma intervenção estranha - a do homem.
No caso da maçã, encontramos fases que se sucedem, a segunda derivando da primeira etc. Ela segue o “devir” de que fala Engels. No exemplo do lápis, as fases justapõem-se, sem resultar uma da outra. É que a maçã, essa segue um processo natural.
III. O processo (palavra que vem do latim, e quer dizer marcha em frente, ou o ato de avançar, de progredir).
Por que é que a maçã verde se torna madura?
É por causa do que contém, por causa de encadeamentos internos que a obrigam a amadurecer; é porque era, mesmo antes de estar madura, uma maçã, que não podia deixar de amadurecer.
Quando se examina a flor que se tornará maçã, depois, a maçã verde que se tornará madura, constata-se que os encadeamentos que impelem a maçã na sua evolução atuam sob o domínio de forças internas a que chamamos autodinamismo, o que significa: força que vem do próprio ser.
Quando o lápis era ainda prancha, foi preciso a intervenção do homem para o fazer tornar-se lápis, porque nunca a prancha se transformaria, só por si, em lápis. Não houve forças internas, autodinamismo, processo.
Portanto, quem diz dialética, não diz só movimento, mas, também, autodinamismo.
Vemos, pois, que o movimento dialético contém em si o processo, o autodinamismo, que lhe é essencial.
Com efeito, nem todo o movimento ou mudança é dialético. Se tomarmos uma pulga, que vamos estudar do ponto de vista dialético, diremos que não foi nem será sempre o que é; se a esmagarmos, certamente, haverá, para ela, uma mudança, mas será dialética? Não. Sem nós, não seria esmagada. Essa mudança não é dialética, mas mecânica.
Devemos, por conseguinte, prestar muita atenção quando falamos da mudança dialética. Pensamos que, se a Terra continuar a existir, a sociedade capitalista será substituída por outra e depois por outra. Isto será uma mudança dialética. Mas, se a Terra explodir, a sociedade capitalista desaparecerá, não por uma mudança autodinâmica, mas por uma mecânica.
Numa outra ordem de ideias, dizemos que há uma disciplina mecânica quando não é natural. Mas é autodinâmica quando é livremente consentida, isto é, quando vem do seu meio natural. Uma disciplina mecânica é imposta de fora; vem de chefes que são diferentes dos que comandam. (Compreendemos, então, quanto à disciplina não mecânica, a autodinâmica, não está ao alcance de todas as organizações!)
É-nos preciso, pois, evitar servir-nos da dialética de uma maneira mecânica. É uma tendência que nos vem do nosso hábito metafísico de pensar. Não é necessário repetir, como um papagaio, que as coisas não foram sempre o que são. Quando um dialético diz isso, deve procurar nos fatos o que as coisas foram antes.
Porque dizer isso não é o fim de um raciocínio, mas o começo dos estudos para observar minuciosamente o que as coisas foram antes.
Marx e Engels fizeram estudos longos e precisos acerca do que foi a sociedade capitalista antes deles.
Observaram os detalhes mais ínfimos, para notar as mudanças dialéticas. Lenine, para descrever e criticar as mudanças da sociedade capitalista, analisar o período imperialista, fez estudos muito precisos, consultou numerosas estatísticas.
Quando falamos de autodinamismo, também nunca devemos fazer dele uma frase literária, devemos empregar essa palavra apenas com conhecimento de causa, e para os que a compreendam totalmente.
Enfim, depois de ter visto, ao estudar uma coisa, quais são as suas mudanças autodinâmicas, e dito qual se constatou, é preciso estudar, procurar de onde vem que seja autodinâmica.
É por isso que a dialética, as pesquisas e as ciências estão estreitamente ligadas.
A dialética não é um meio de explicar e de conhecer as coisas sem as ter estudado, mas o de estudar bem e fazer boas observações, pesquisando o começo e o fim das coisas, de onde vêm e para onde vão.

(48) Friedrich EINGELS: “Ludwig Feuerbach”.

SEGUNDA LEI: A AÇÃO RECÍPROCA

I. O encadeamento dos processos. II. As grandes descobertas do século XIX.
1. A descoberta da célula viva e do seu desenvolvimento. 2. A descoberta da transformação da energia. 3. A descoberta da evolução no homem e nos animais. III. O desenvolvimento histórico ou em espiral. IV. Conclusão.
I. O encadeamento dos processos.
Acabamos de ver, a propósito da história da maçã, o que é um processo. Retomamos esse exemplo.
Procuramos de onde vinha a maçã, e devemos, nas nossas pesquisas, chegar até à árvore. Mas, o problema de pesquisa põe-se, também, para esta. O estudo da maçã conduz-nos ao das origens e dos destinos da árvore. De onde vem? Da maçã. De uma maçã que caiu, apodreceu na terra para dar origem a um rebento, e isto leva-nos a estudar o terreno, as condições em que as sementes puderam dar um rebento, as influências do ar, do sol etc. Assim, partindo do estudo da maçã, somos conduzidos ao exame do solo, passando do processo da maçã ao da árvore; este processo encadeia-se, por sua vez, no do solo. Temos o que se chama: “um encadeamento de processos”. Isto vai-nos permitir enunciar e estudar a segunda lei da dialética: a lei
da ação recíproca. Tomemos como exemplo de encadeamento de processos, depois do da maçã, o da Universidade Operária de Paris.
Se estudarmos esta escola do ponto de vista dialético, procuraremos de onde vem, e teremos, inicialmente, uma resposta: no outono de 1932, camaradas reunidos decidiram fundar em Paris uma Universidade Operária para estudar o marxismo.
Mas como teve esse comitê a ideia de fazer estudar o marxismo? Foi, evidentemente, porque ele existe. Mas, então, de onde vem o marxismo?
Vemos que a pesquisa do encadeamento dos processos nos conduz a estudos minuciosos e completos. Mais ainda: indagando de onde vem o marxismo, seremos levados a constatar que essa doutrina é a própria consciência do proletariado; vemos, pois, (seja-se por ou contra o marxismo) que o proletariado existe; e, então, poremos, de novo, a pergunta: de onde vem o proletariado?
Sabemos que de um sistema econômico: o capitalismo. Sabemos que a divisão da sociedade em classes, a luta de classes, não nasceu, como o pretendem os nossos adversários, do marxismo, mas, pelo contrário, que este constata a existência de tal luta, e colhe a sua força no proletariado já existente.
Portanto, de processo em processo, chegamos ao exame das condições de existência do capitalismo. Temos, assim, um encadeamento de processos, que nos demonstra que tudo influi sobre tudo. É a lei da ação recíproca.
Em conclusão destes dois exemplos, o da maçã e o da Universidade Operária de Paris, vemos como teria procedido um metafísico.
No exemplo da maçã, apenas poderia pensar “de onde vem a maçã?”. E sentir-se-ia satisfeito com a resposta: “a maçã vem da árvore”. Ficar-se-ia por aí. Para a Universidade Operária, ficaria satisfeito por dizer, da sua origem, que foi fundada por um grupo de homens que querem “corromper o povo francês” ou outras banalidades...
Mas o dialético, esse vê todos os encadeamentos de processos, que terminam, conforme os casos, na maçã e na Universidade Operária. O dialético liga o fato particular, o detalhe ao conjunto.
Associa a maçã à árvore, e vai mais longe, até à natureza no seu conjunto. A maçã não é só o fruto da macieira, mas, também, o de toda a natureza.
A Universidade Operária não é apenas o “fruto” do proletariado, mas, também, o da sociedade capitalista.
Vemos, portanto, que, contrariamente ao metafísico, que concebe o mundo como um conjunto de coisas congeladas, o dialético verá o mundo como um conjunto de processos. E, se o ponto de vista dialético é verdadeiro para a natureza e para as ciências, é-o, também, para a sociedade.
O antigo método de pesquisa e de pensamento, a que Hegel chama o método metafísico, e que se ocupava, de preferência, do estudo das coisas consideradas na qualidade de objetos fixos dados... tinha, então, a sua grande justificação histórica. (49)
Por conseguinte, estudava-se, nessa época, todas as coisas e a sociedade como um conjunto de “objetos fixos dados”, que não só não mudam, mas, particularmente para a sociedade, não estão destinados a desaparecer.
Engels assinala a importância capital da dialética, essa grande ideia fundamental segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas
acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas, na aparência estáveis, do mesmo modo que os seus reflexos intelectuais no nosso cérebro, as ideias, passam por uma mudança ininterrupta de devir e decadência, em que, finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos momentâneos, um
desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje. (50)
Nem mesmo a sociedade capitalista deve, pois, ser considerada como um “complexo de coisas acabadas”, mas, pelo contrário, ser estudada, também, como um complexo de processos.
Os metafísicos dão-se conta de que a sociedade capitalista não existiu sempre, e dizem que tem uma história, mas pensam que, com a sua aparição, a sociedade acabou de evoluir e ficará, doravante, “fixa”. Consideram todas as coisas como acabadas, e não como o início de um novo processo. O relato da criação do mundo por Deus é uma explicação do mundo como complexo de coisas acabadas. Deus executou uma tarefa acabada em cada dia. Fez as plantas, os animais, o homem de uma vez para sempre; daí a teoria do fixismo.
A dialética pensa de uma maneira oposta. Não considera as coisas na qualidade de “objetos fixos”, mas em “movimento”. Para ela, nenhuma coisa se encontra acabada; é sempre o fim de um processo e o começo de um outro, sempre em vias de se transformar, desenvolver. É por isso que estamos tão seguros da transformação da sociedade capitalista em socialista. Nada estando definitivamente acabado, a sociedade capitalista é o fim de um processo ao qual sucederá a socialista, depois a comunista, e assim sucessivamente; há e haverá continuamente um desenvolvimento.
Mas, aqui, é preciso ter em atenção que a dialética não deve ser considerada como qualquer coisa de fatal, de onde se poderia concluir: “uma vez que estais tão seguros da mudança que desejais, por que lutais”?
Porque, como disse Marx, “para fazer dar à luz a sociedade socialista, será preciso um parteiro”; de onde a necessidade da revolução, da ação.
É que as coisas não são tão simples. É preciso não esquecer o papel dos homens que podem acelerar ou retardar essa transformação (tornaremos a ver este assunto no capítulo V desta parte, quando falarmos do “materialismo histórico”).
O que constatamos atualmente é a existência, em todas as coisas, do encadeamento de processos que se produzem pela força interna daquelas (o autodinamismo). É que, para a dialética, insistimos nisso, nada está acabado. É necessário considerar o desenvolvimento das coisas como não tendo nunca cena final. No fim de uma peça de teatro do mundo, começa o primeiro ato de uma outra. Para dizer a verdade, ele começa já no último da peça precedente...
II. As grandes descobertas do século XX.
O que determinou o abandono do espírito metafísico, e obrigou os sábios, depois de Marx e Engels, a considerar as coisas no seu movimento dialético, foi, sabemo-lo, as descobertas feitas no século XIX. São, sobretudo, três grandes descobertas dessa época, assinaladas por Engels, em “Ludwig Feuerbach”, que fizeram progredir a dialética. (51)
1. A descoberta da célula viva e do seu desenvolvimento. (52)
Antes desta descoberta, tomara-se como base de raciocínio o “fixismo”. As espécies eram consideradas como estranhas umas às outras. Além disso, distinguia-se, categoricamente, de um lado, o reino animal, do outro, o vegetal.
Depois dessa descoberta, foi possível precisar a ideia da “evolução”, que os pensadores e sábios do século XVIII tinham já ventilado. Ela permite compreender que a vida é feita de uma sucessão de mortes e nascimentos, e que todo o ser vivo é uma associação de células. Pelo que esta constatação não deixa subsistir qualquer fronteira entre animais e plantas, e, assim, afasta a concepção metafísica.
2. A descoberta da transformação da energia.
Outrora, a ciência acreditava que o som, o calor, a luz, por exemplo, eram completamente estranhos uns aos outros. Ora, descobre-se que todos esses fenômenos se podem transformar uns nos outros, que há encadeamentos de processos, tanto na matéria inerte como na natureza viva. Tal revelação é, ainda, um golpe aplicado no espírito metafísico.
3. A descoberta da evolução no homem e nos animais.
Darwin, disse Engels, demonstra que todos os produtos da natureza são o resultado de um longo processo de desenvolvimento de pequenos germes, unicelulares na origem: tudo é o produto de um longo processo, tendo por origem a célula. E Engels conclui que, graças a essas três grandes descobertas, podemos seguir o encadeamento de todos os fenômenos da natureza, não só no interior dos diferentes domínios, mas, também, entre eles.
Foram, pois, as ciências que permitiram o enunciado desta segunda lei da ação recíproca.
Entre os reinos vegetal, animal e mineral, nada de separações, apenas processos; tudo se encadeia. Isso também é verdade para a sociedade. As diferentes sociedades que atravessaram a história dos homens devem ser consideradas como uma sequência de encadeamentos de processos, em que cada uma saiu, necessariamente, da que a precedeu.
Devemos, portanto, fixar que: a ciência, a natureza, a sociedade devem ser vistas como um encadeamento de processos, e o motor que trabalha para desenvolver tal encadeamento é o autodinamismo.
III. O desenvolvimento histórico ou em espiral.
Se examinarmos um pouco mais de perto o processo que começamos a conhecer, vemos que a maçã é o resultado de um encadeamento de processos. De onde vem a maçã? Vem da árvore. De onde vem a árvore? Da maçã. Podemos, portanto, pensar que temos um círculo vicioso, no qual acabamos por voltar sempre ao mesmo ponto: árvore, maçã. Maçã, árvore. O mesmo acontecerá se tomarmos o exemplo do ovo e da galinha. De onde vem o ovo? Da galinha. De onde vem a galinha? Do ovo.
Se considerássemos as coisas assim, tal não seria um processo, mas um círculo, e essa aparência deu mesmo a ideia do “retorno ao eterno”. Isto é, voltaríamos sempre ao mesmo ponto, ao de partida.
Mas, vejamos exatamente como se põe o problema:
Eis uma maçã. Esta, decompondo-se, dá origem a uma ou mais árvores. Cada árvore não dá uma maçã, mas várias.
Não voltamos, portanto, ao mesmo ponto de partida; voltamos à maçã, mas num outro plano. Do mesmo modo, se partirmos da árvore, teremos: uma árvore que dá maçãs e maçãs que darão árvores.
Também aqui voltamos à árvore, mas num outro plano. O ponto de vista ampliou-se.
Não temos, pois, um círculo, como as aparências poderiam fazer pensar, mas um processo de desenvolvimento, a que chamaremos desenvolvimento histórico. A história mostra que o tempo não passa sem deixar marca. Passa, mas os desenvolvimentos que ocorrem não são os mesmos. O mundo, a natureza, a sociedade constituem um desenvolvimento que é histórico, e, em linguagem filosófica, se chama “em espiral”.
Servimo-nos desta imagem para fixar as ideias. É uma comparação para ilustrar o fato de que as ciências evoluem segundo um processo circular, mas não voltam ao ponto de partida; voltam um pouco acima, num outro plano, e assim sucessivamente, o que dá uma espiral ascendente.
Por conseguinte, o mundo, a natureza, a sociedade têm um desenvolvimento histórico (em espiral), que é movido, não o esqueçamos, pelo autodinamismo.
IV. Conclusão.
Acabamos de estudar, nestes primeiros capítulos sobre a dialética, as duas primeiras leis: a da mudança e a da ação recíproca. Isto era indispensável para poder abordar o estudo da lei da contradição, porque é ela que nos vai permitir compreender a força que move “a mudança dialética”, o autodinamismo.
No primeiro capítulo, relativo ao estudo da dialética, vimos porque fora esta teoria muito tempo dominada pela concepção metafísica e porque era metafísico o materialismo do século XVIII.
Compreendemos melhor agora, depois de ter visto rapidamente as três grandes descobertas do século XIX, que permitiram ao materialismo desenvolver-se para se tornar dialético, porque era necessário que a história desta filosofia atravessasse os três grandes períodos que conhecemos: 1° materialismo da antiguidade (teoria
dos átomos); 2° materialismo do século XVIII (mecanicista e metafísico), para levar, enfim, 3° ao materialismo dialético.
Afirmamos que o materialismo nascera das ciências e ligado a elas. Podemos ver, após estes três capítulos, como isso é verdade. Vimos, no estudo do movimento e da mudança dialéticos, depois dessa lei da ação recíproca, que todos os nossos raciocínios são baseados nas ciências.
Hoje, em que os estudos científicos estão especializados ao extremo e os sábios (ignorando, em geral, o materialismo dialético) não podem, por vezes, compreender a importância das suas descobertas particulares em relação ao conjunto das ciências, cabe à filosofia dar uma explicação do mundo e dos problemas mais gerais; é a missão em particular do materialismo dialético - reunir todas as descobertas particulares de cada ciência, para fazer a síntese, e dar, assim, uma teoria que nos torne cada vez mais, como dizia Descartes, mestres e possuidores da natureza.

(49) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach” (50) Idem, p. 34. (51) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach” (52) Foram Schwann e Schleiden que, ao descobrir, com a célula orgânica, “a unidade a partir da qual se desenvolve, por multiplicação e diferenciação, todo o organismo vegetal e animal”, estabeleceram a continuidade dos dois grandes reinos da natureza viva.

TERCEIRA LEI: A CONTRADIÇÃO

I. A vida e a morte. II. As coisas transformam-se no seu contrário. III. Afirmação, negação e negação da negação. IV. Recapitulemos. V. A unidade dos contrários.
VI. Erros a evitar. VII. Consequências práticas da dialética.
Vimos que a dialética considera as coisas como estando em perpétua mudança, evoluindo continuamente, numa palavra, sofrendo um movimento dialético (1.ª Lei).
Este movimento é possível, porque toda e qualquer coisa não é mais do que o resultado, no momento em que a estudamos, de um encadeamento de processos, isto é, de fases que saem umas das outras. E, levando o nosso estudo mais adiante, vimos que esse encadeamento se desenvolve necessariamente no tempo num movimento progressivo, “apesar dos retrocessos momentâneos”.
Chamamos a esse desenvolvimento um “desenvolvimento histórico” ou “em espiral”, e sabemos que se gera a si mesmo, por autodinamismo.
Mas, quais são, agora, as leis do autodinamismo? Quais as que permitem às fases sair umas das outras?
Chamam-se as “leis do movimento dialético”.
A dialética ensina-nos que as coisas não são eternas: têm um começo, uma maturidade, uma velhice, que termina num fim, a morte.
Todas as coisas passam por essas fases: nascimento, maturidade, velhice, fim. Por que acontece assim? Por que não são as coisas eternas?
Eis uma velha pergunta que sempre apaixonou a humanidade. Por que é preciso morrer? Não se compreende esta necessidade, e os homens, no decurso da história, sonharam com a vida eterna, com os meios de mudar tal estado de coisas, na idade média, por exemplo, inventando bebidas mágicas (elixires de juventude ou da vida).
Por que quem nasce é obrigado a morrer? Eis uma grande lei da dialética, que deveremos confrontar, para bem a compreender, com a metafísica.
1.  A vida e a morte.
Do ponto de vista metafísico, consideram-se as coisas de um modo isolado, tomadas em si mesmas, e, porque a metafísica as estuda assim, considera-as de uma maneira unilateral, isto é, de um só lado. É por isso que se pode dizer, dos que as veem de um só lado, que são metafísicos. Em poucas palavras, quando um metafísico examina o fenômeno a que se chama vida, fá-lo sem o relacionar a qualquer outro. Vê a vida, por
si e em si, de uma maneira unilateral. Vê-a de um só lado. Se examinar a morte, fará a mesma coisa; aplicará o seu ponto de vista unilateral, e concluirá dizendo: a vida é a vida, a morte é a morte. Entre ambas, nada de comum; não se pode estar ao mesmo tempo vivo e morto, porque são duas coisas opostas, inteiramente contrárias uma à outra.
Ver assim as coisas, é fazê-lo de uma maneira superficial. Se as examinarmos um pouco mais de perto, veremos, primeiro, que não as podemos opor uma à outra, não podemos mesmo separá-las tão brutalmente, uma vez que a experiência e a realidade nos mostram que a morte continua a vida, que a morte vem do vivo.
E a vida, pode sair da morte? Sim. Porque os elementos do corpo morto vão transformar-se para dar origem a outras vidas e servir de adubo à terra, que será mais fértil, por exemplo. A morte, em muitos casos, auxiliará a vida, permitirá a esta nascer; e, nos próprios corpos vivos, a vida só é possível porque há uma contínua substituição das células que morrem por outras que nascem. ( Enquanto consideramos as coisas como em repouso e sem vida, cada uma por si, uma ao lado e após a outra, não nos apercebemos, certamente, de qualquer contradição entre elas. Encontramos certas propriedades que são, em parte, comuns, em parte, diversas, até contraditórias, mas que, neste caso, são repartidas por coisas diferentes, não contendo, portanto, contradição em si mesmas. Nos limites deste domínio de observação, ficamo-nos pelo modo de pensar corrente, o metafísico. Mas procederemos de maneira diferente, se considerarmos as coisas nos seus movimento, mudança, vida, ação recíproca uma sobre a outra. Aí, caímos imediatamente nas contradições). (53)
Portanto, a vida e a morte transformam-se continuamente uma na outra, e, em todas as coisas, constatamos a constância desta grande lei: por toda a parte, as coisas transformam-se em seu contrário.
II. As coisas transformam-se em seu contrário.
Os metafísicos opõem os contrários, mas, a realidade demonstra-nos que estes se transformam um no outro, que as coisas não permanecem elas próprias, se transformam em seus contrários.
Se examinarmos a verdade e o erro, pensamos: não há nada de comum entre eles. A verdade é a verdade, um erro é um erro. Este o ponto de vista unilateral, que opõe brutalmente os dois contrários, como se oporia a vida e a morte.
E, todavia, se dizemos: “olha, chove!”, acontece que, por vezes, ainda não acabamos de o dizer e já não chove. Essa frase era exata, quando a começamos, e transformou-se em erro. (Os Gregos já tinham constatado isso, e diziam que, para não errar, era preciso não dizer nada!)
Do mesmo modo, retomemos o exemplo da maçã. Vê-se na terra uma maçã madura, e diz-se: “eis uma maçã madura”. Contudo, estando na terra há certo tempo, já começa a decompor-se, de tal forma que a verdade se transforma em erro.
Também as ciências nos dão numerosos exemplos de leis consideradas, durante muitos anos, como “verdades”, que se revelaram, num dado momento, após os progressos científicos, como “erros”.
Vemos, portanto, que a verdade se transforma em erro. Mas, será que o erro se transforma em verdade?
No início da civilização, os homens imaginavam, sobretudo no Egito, combates entre os deuses, para explicar o nascer e o pôr do sol; era um erro, na medida em que se dizia que os deuses empurravam ou puxavam o sol, para o fazer mover. Mas, a ciência dá parcialmente razão a esse raciocínio, dizendo que há, efetivamente, forças (puramente físicas, aliás) que fazem mover o sol. Veremos, pois, que o erro não está
nitidamente oposto à verdade.
Se, portanto, as coisas se transformam em seu contrário, como é isso possível? Como se transforma a vida na morte?
Se houvesse apenas vida, a vida cem por cento, ela nunca poderia ser a morte, e se a morte fosse totalmente ela própria, a morte cem por cento, seria impossível que uma se transformasse na outra. Mas, já existe morte na vida e, por conseguinte, vida na morte.
Observando de perto, veremos que um ser vivo é composto de células, que estas se renovam, desaparecem e reaparecem no mesmo lugar. Vivem e morrem continuamente num ser vivo, onde existe, portanto, vida e morte.
Sabemos, também, que a barba de um morto continua a crescer. O mesmo acontece com as unhas e os cabelos. Eis fenômenos nitidamente caracterizados, que provam que a vida continua na morte.
Na Rússia, conserva-se, em condições especiais, sangue de cadáveres, que serve para fazer transfusões: assim, com o sangue de um morto, refaz-se um vivo. Podemos dizer que, por conseguinte, no seio da morte há a vida.
A vida é, pois, igualmente uma contradição “existente nas coisas e nos fenômenos em si”, uma contradição que, constantemente, se apresenta e resolve; logo que a contradição cessa, a vida cessa também, intervém a morte. (54)
Assim, as coisas não só se transformam umas nas outras, mas, ainda, uma coisa não é apenas ela própria, mas outra que é o seu contrário, porque cada coisa contém o seu contrário.
Toda a coisa é, ao mesmo tempo, ela própria e o seu contrário.
Se se representa uma coisa por um círculo, teremos uma força que a impelirá para a vida, empurrando do centro para o exterior, por exemplo, (expansão); mas teremos, também, forças que a impelirão numa direção oposta, forças de morte, empurrando do exterior para o centro (compressão).
Assim, no interior de cada coisa, coexistem forças opostas, antagonismos.
Que se passa entre essas forças? Lutam. Por conseguinte, uma coisa não é apenas movida por uma força agindo num só sentido, mas toda a coisa é, realmente, movida por duas forças de direções opostas. Para a afirmação e para a negação das coisas, para a vida e para a morte. Que significa: afirmação e negação das coisas?
Existem, na vida, forças que a mantêm, que tendem para a sua afirmação. Além dessas, também existem nos organismos outras que tendem para a negação. Em todas as coisas, há forças que tendem para a afirmação e outras para a negação, e, entre a afirmação e a negação, há contradição.
Portanto, a dialética constata a mudança; mas, por que mudam as coisas? Porque não estão de acordo consigo próprias, porque há luta entre as forças, entre os antagonismos internos, porque há contradição. Eis a terceira lei da dialética: As coisas mudam, porque contêm em si mesmas a contradição.
Mas se somos obrigados, por vezes, a empregar palavras mais ou menos complicadas (como dialética, autodinamismo etc.) ou termos que parecem contrários à lógica tradicional e difíceis de compreender, não é pelo prazer de complicar às coisas, e, nisso, imitar a burguesia. Não. Mas, este estudo, embora elementar, pretende ser tão completo quanto possível e permitir ler, em seguida, mais facilmente, as obras filosóficas de Marx-Engels e Lenine, que empregam esses termos. Em todo o caso, uma vez que devemos empregar uma linguagem que não é usual, procuraremos, no âmbito deste estudo, torná-la compreensível a todos.
III. Afirmação, negação e negação da negação.
É necessário fazermos, aqui, uma distinção entre o que se chama a contradição verbal - que significa responder “não”, quando alguém vos diz “sim” - e a que acabamos de ver, a chamada contradição dialética, isto é, nos fatos, nas coisas.
Quando falamos da contradição que existe no seio da sociedade capitalista, isso não significa que, sobre certas teorias, uns dizem sim, outros não; quer dizer que há uma contradição nos fatos, forças reais que se combatem: primeiro, uma força que tende a afirmar-se, é a classe burguesa que procura manter-se; depois, uma segunda força social que tende para a negação da classe burguesa, é o proletariado. A contradição está, pois, nos fatos, porque a burguesia não pode existir sem criar o seu contrário, o proletariado. Como disse Marx, “antes de tudo” a burguesia produz os seus próprios coveiros. (55)
Para impedir isso, seria necessário que a burguesia renunciasse a ser ela própria, o que seria absurdo. Por conseguinte, afirmando-se, criou a sua própria negação.
Tomemos o exemplo de um ovo que é posto e chocado por uma galinha: constatamos que, nele, se encontra o germe que, a uma certa temperatura e em certas condições, se desenvolve. Desenvolvendo-se, dará um pintinho: deste modo, o germe é já a negação do ovo. Veremos que, sem dúvida, no ovo há duas forças: a que tende para que permaneça um ovo e a que tende a que se torne pintinho. O ovo está, portanto, em desacordo consigo próprio, e todas as coisas o estão consigo mesmas.
Isto pode parecer difícil de compreender, porque estamos habituados ao modo de raciocinar metafísico, e é por isso que devemos fazer um esforço para nos habituar a ver, novamente, as coisas na sua realidade.
Uma coisa começa por ser uma afirmação que sai da negação. O pintinho é uma afirmação resultante da negação do ovo. É esta uma fase do processo.
Mas a galinha será, por sua vez, a transformação do pintinho, havendo, no centro desta transformação, uma contradição entre as forças que lutam para que o pintinho se torne galinha e as que lutam para que permaneça pintinho. A galinha será, pois, a negação do pintinho, que vinha, por sua vez, da negação do ovo.
A galinha será, por conseguinte, a negação da negação. E isso é a marcha geral das fases da dialética.
1. Afirmação diz-se também Tese. 2. Negação ou Antítese. 3. Negação da negação ou Síntese.
Estas três palavras resumem o desenvolvimento dialético. Empregam-se para representar o encadeamento das fases, para indicar que cada uma é a destruição da precedente.
A destruição é uma negação. O pintinho é a negação do ovo, uma vez que, nascendo, o destrói. A espiga de trigo é, da mesma maneira, a negação do grão de trigo. O grão, na terra, germinará; essa germinação é a negação do grão de trigo, que dará a planta, que, por sua vez, florirá e dará uma espiga; esta será a negação da planta ou a negação da negação.
Vemos, pois, que a negação de que fala a dialética é uma maneira resumida de falar da destruição. Há a negação do que desaparece, do que é destruído.
1. O feudalismo foi a negação do escravismo. 2. O capitalismo é a negação do feudalismo. 3. O socialismo é a negação do capitalismo.
Assim como para a contradição, em que fizemos uma distinção entre contradição verbal e lógica, devemos compreender bem o que é a negação verbal, que diz “não”, e a dialética, que quer dizer “destruição”.
Mas, se a negação significa destruição, não se trata de qualquer destruição, mas de uma destruição dialética.
Assim, quando esmagamos uma pulga, ela não morre por destruição interna, por negação dialética. A sua destruição não é o resultado de fases autodinâmicas; é o de uma mudança puramente mecânica.
A destruição só é uma negação se for um produto da afirmação, se dela sair. Assim: o ovo chocado, sendo a afirmação do que o ovo é, origina a sua negação - torna-se pintinho, e este simboliza a destruição ou negação do ovo, rompendo, destruindo a casca.
No pintinho, vemos duas forças adversas: “pintinho” e “galinha”; no decurso deste desenvolvimento do processo, a galinha porá ovos, nova negação da negação.
Destes, partirá, então, um novo encadeamento do processo.
Para o trigo, vemos, também, uma afirmação, depois, uma negação e uma negação da negação.
Como outro exemplo, daremos o da filosofia materialista.
No início, encontramos um materialismo primitivo, espontâneo, que, por ignorante, cria a sua própria negação: o idealismo. Mas este, negando o antigo materialismo, será negado pelo moderno ou dialético, porque a filosofia se desenvolve e provoca, com as ciências, a destruição do idealismo. Também aqui, portanto, temos; afirmação,  negação e negação da negação.
Constatamos, igualmente, tal ciclo na evolução da sociedade.
Verificamos, no começo da história, a existência de uma sociedade de comunismo primitivo, sem classes, baseada na propriedade comum do solo. Mas, tal forma de propriedade torna-se um entrave ao desenvolvimento da produção, criando, por isso mesmo, a sua própria negação: a sociedade com classes, baseada na propriedade privada e na exploração do homem pelo homem. Mas, essa sociedade traz também
consigo a sua própria negação, porque um desenvolvimento superior dos meios de produção leva à necessidade de negar a divisão da sociedade em classes, a propriedade privada, e regressamos, assim, ao ponto de partida: a necessidade da sociedade comunista, mas num outro plano; no início, tínhamos uma falta de produtos; hoje, temos uma capacidade de produção muito elevada.
Observamos, a este respeito, por todos os exemplos que demos, que regressamos sempre ao ponto de partida, mas num outro plano (desenvolvimento em espiral), um plano mais elevado.
Vemos, pois, que a contradição é uma grande lei da dialética. Que a evolução é uma luta de forças antagonistas. Que não só as coisas se transformam umas nas outras, mas, também, cada uma no seu contrário.
Que as coisas não estão de acordo consigo próprias, porque há, nelas, luta entre forças opostas, uma contradição interna.
Nota. Devemos prestar bem atenção a isto: a afirmação, a negação, a negação da negação são apenas expressões resumidas das várias fases da evolução dialética, não sendo preciso correr mundo para encontrar essas três fases por toda a parte. É certo que não as encontraremos sempre todas; mas, por vezes, só a primeira ou a segunda, não estando a evolução terminada. É desnecessário, pois, querer ver, mecanicamente, em todas as coisas, essas mudanças tal qual. Fixemos, sobretudo, que a contradição é a grande lei da dialética. É o essencial.
IV. Recapitulemos.
Sabemos já que a dialética é um método de pensar, raciocinar, analisar, que permite fazer boas observações e estudar bem, porque nos obriga a procurar a origem das coisas e a descrever a história.
Certamente, o antigo método de pensar, vimo-lo, teve a sua necessidade no seu tempo. Mas, estudar com o método dialético é constatar, repetimo-lo, que todas as coisas, na aparência imóveis, são apenas um encadeamento de processos onde tudo tem um começo e um fim, onde em tudo, finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e retrocessos momentâneo um desenvolvimento progressivo acaba por se fazer hoje. (56)
Só a dialética nos permite compreender o desenvolvimento, a evolução das coisas; só ela nos permite compreender a destruição das antigas e o nascimento das novas. Só a dialética nos faz compreender todos os desenvolvimentos nas suas transformações, conhecendo-os como todos formados de contrários. Porque, para a concepção dialética, o desenvolvimento natural das coisas, a evolução, é uma luta contínua de forças e princípios opostos.
Assim, pois, para a dialética, a primeira lei é a constatação do movimento e da mudança: “Nada permanece o que é, nada fica onde está” (Engels). Sabemos, agora, que a explicação desta lei reside em que as coisas mudam, não só transformando-se umas nas outras, mas, também, nos seus contrários. A contradição é, portanto, uma grande lei da dialética.
Estudamos o que é, do ponto de vista dialético, a contradição, mas é necessário insistir ainda, para fazer certas precisões e, também, para assinalar alguns erros que é preciso não cometer.
É bem certo que, primeiro, é necessário familiarizarmo-nos com esta afirmação, que está de acordo com a realidade: a transformação das coisas nos seus contrários. Certamente, ela fere o entendimento, admira-nos, porque estamos habituados a pensar com o velho método metafísico. Mas, vimos porque é assim; vimos, de uma maneira detalhada, por meio de exemplos, que isso está na realidade e por que as coisas se transformam nos seus contrários.
É por isso que se pode dizer e afirmar que, se as coisas se transformam, mudam, evoluem, é porque estão em contradição com elas próprias, trazem em si o seu contrário, contêm a unidade dos contrários.
V. A unidade dos contrários.
Cada coisa é uma unidade de contrários.
Afirmar isso parece, à primeira vista, um absurdo. “Uma coisa e o seu contrário nada têm de comum”, eis o que se pensa em geral. Mas, para a dialética, toda a coisa é, ao mesmo tempo, ela própria e o seu contrário, uma unidade de contrários, e é preciso explicar bem isso.
A unidade dos contrários, para um metafísico, é uma coisa impossível: Para ele, as coisas são feitas de uma só peça, de acordo com elas próprias, e eis que afirmamos o contrário, ao saber que são feitas de duas peças - elas próprias e os seus contrários - e que nelas há duas forças que se combatem, porque as coisas não estão de acordo com elas próprias, se contradizem a si mesmas.
Se tomarmos o exemplo da ignorância e da ciência, isto é, do saber, sabemos que, do ponto de vista metafísico, são duas coisas totalmente opostas e contrárias uma à outra. O que é ignorante não é um sábio, e o que é um sábio não é um ignorante.
No entanto, se olharmos os fatos, vemos que não dão lugar a uma oposição tão rígida. Vemos que, primeiramente, reinou a ignorância, depois é que veio a ciência; e, aí, verificamos que uma coisa se transforma no seu contrário: a ignorância em ciência.
Não há ignorância sem ciência, não há ignorância cem por cento. Um indivíduo, por muito ignorante que seja, sabe reconhecer, pelo menos, os objetos, a sua alimentação; não há nunca ignorância absoluta; existe sempre uma percentagem de ciência na ignorância. A ciência está já, em germe, na ignorância; é, pois, justo afirmar que o contrário de uma coisa está na coisa em si.
Vejamos, agora, a ciência. Pode haver ciência cem por cento? Não. Ignora-se sempre qualquer coisa. Disse Lenine: “O objeto do conhecimento é inesgotável”; o que significa que há sempre que aprender. Não há ciência absoluta. Todo o saber, toda a ciência contém uma parte de ignorância. (57)
O que existe, na realidade, é uma ignorância e uma ciência relativas, uma mistura de ambas.
Não é, portanto, a transformação das coisas nos seus contrários que constatamos neste exemplo, mas, é, na mesma coisa, a existência dos contrários ou a unidade dos contrários.
Poderíamos retomar os exemplos que já vimos: a vida e a morte, a verdade e o erro, e constataríamos que, num e noutro caso, como em todas as coisas, existe uma unidade dos contrários, isto é, que cada uma contém, ao mesmo tempo, ela própria e o seu contrário. É por isso que Engels dirá: Se, na pesquisa, nos inspirarmos constantemente neste ponto de vista, deixa-se, de uma vez para sempre, de procurar soluções definitivas e verdades eternas; tem-se sempre consciência do caráter necessariamente limitado de todo o conhecimento adquirido, da sua dependência acerca das condições nas quais foi adquirido; não mais deixar-se iludir pelas antinomias, irredutíveis para a velha metafísica sempre em uso, do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, do idêntico e do diferente, do fatal e do fortuito; sabe-se que
estas têm apenas um valor relativo, que o que é conhecido agora como verdadeiro tem o seu lado falso escondido, que aparecerá mais tarde, assim como o que é atualmente reconhecido como falso tem o seu lado verdadeiro, graças ao qual pôde, anteriormente, ser considerado como verdadeiro. (58)
Este texto de Engels mostra-nos bem como é preciso compreender a dialética e o sentido verdadeiro da unidade dos contrários.
VI. Erros a evitar.
É preciso explicar bem essa grande lei da dialética que é a contradição, para não criar mal-entendidos.
Primeiro, é-nos necessário compreendê-la de uma maneira mecânica. É desnecessário pensar que, em todo o conhecimento, existe a verdade mais o erro, ou o verdadeiro mais o falso.
Se se aplicasse essa lei assim, dar-se-ia razão aos que dizem que, em todas as opiniões, há uma parte de verdadeiro mais uma parte de falso, e que: “retiremos o que é falso, ficará o verdadeiro, o que é bom”. Diz-se isso em certos meios pretensamente marxistas, em que se pensa que o marxismo tem razão em mostrar que, no capitalismo, há fábricas, monopólios, bancos que têm nas mãos a vida econômica, que têm razão para dizer que esta (economia) caminha mal; mas, o que é falso no marxismo, acrescente-se, é a luta de classes: deixemos de lado a teoria da luta de classes, e teremos uma boa doutrina. Diz-se, também, que o marxismo, aplicado ao estudo da sociedade, é justo, verdadeiro, “mas, para quê misturar-lhe a dialética? Eis o lado falso, retiremos esta (a dialética) e guardemos como verdadeiro o resto do marxismo!”.
São estas interpretações mecânicas da unidade dos contrários.
Eis, ainda, outro exemplo: Proudhon pensava, depois de ter tomado conhecimento da teoria dos contrários, que, em cada coisa, havia um lado bom e outro mau. Também, ao constatar que, na sociedade, existe a burguesia e o proletariado, dizia: Retiremos o que é mau: o proletariado! E é assim que põe de pé o seu sistema de créditos, que deviam criar a propriedade parcelar, isto é, permitir aos proletários tornarem-se proprietários; dessa maneira, só haveria burgueses, e a sociedade seria boa.
Sabemos bem, no entanto, que não há proletariado sem burguesia e que esta só existe pelo proletariado: são dois contrários inseparáveis. Tal unidade é interna, verdadeira: é uma união inseparável. Não basta, pois, para as suprimir, separar uma da outra. Numa sociedade baseada na exploração do homem pelo homem, existem, obrigatoriamente, duas classes antagônicas: amos e escravos, na antiguidade, senhores e servos, na idade média, burguesia e proletariado, nos nossos dias.
Para suprimir a sociedade capitalista, criar a sociedade sem classes, é preciso suprimir a burguesia e o proletariado - para permitir aos homens livres criar uma sociedade mais evoluída, material e intelectualmente, para caminhar para o comunismo na sua forma superior, e não para, como pretendem os adversários, criar um comunismo “igualitário na miséria”.
Devemos, portanto, prestar bem atenção quando explicamos ou aplicamos, a um exemplo ou a um estudo, a unidade dos contrários. Devemos evitar querer, em tudo e sempre, encontrar e aplicar mecanicamente, por exemplo, a negação da negação, a unidade dos contrários, porque os nossos conhecimentos são, em geral, muito limitados, e isso pode levar-nos a situações críticas.
O que conta é o princípio: a dialética e as suas leis obrigam-nos a estudar as coisas para descobrir a evolução e as forças, os contrários que determinam essa evolução. É-nos preciso, pois, estudar a unidade dos contrários contida nas coisas, e esta equivale a dizer que uma afirmação não é nunca uma afirmação absoluta, uma vez que contém, em si mesma, uma parte de negação. E isso é o essencial: é por as coisas conterem a sua própria negação que se transformam. A negação é o “dissolvente”: se não existisse, as coisas não mudariam. Como, de fato, estas se transformam, é preciso, na verdade, que contenham um princípio dissolvente. Podemos, de antemão, afirmar que existe, uma vez que vemos as coisas evoluir,
mas, não podemos descobrir tal princípio sem um estudo minucioso da própria coisa, porque ele não tem o mesmo aspecto em todas as coisas.
VII. Consequências práticas da dialética.
Praticamente, portanto, a dialética obriga-nos a considerar sempre, não apenas um lado das coisas, mas ambos: não considerar nunca a verdade sem o erro, a ciência sem a ignorância. O grande erro da metafísica é, justamente, considerar só um dos seus lados, julgar de uma maneira unilateral, e se cometemos muitos erros é sempre na medida em que vemos apenas um lado das coisas, é porque temos, muitas vezes,
raciocínios unilaterais.
Se a filosofia idealista afirma que o mundo existe só nas ideias dos homens, é preciso reconhecer que há, com efeito, coisas que não existem senão no nosso pensamento. Isso é verdade. Mas o idealismo é unilateral, vê apenas esse aspecto. Vê só o homem que inventa coisas que não estão na realidade, e, daí, conclui que nada existe fora das nossas ideias. O idealismo tem razão em sublinhar essa faculdade do homem, mas, aplicando apenas o critério da prática, não vê senão isso.
O materialismo metafísico também se engana, porque vê apenas um lado dos problemas. Vê o universo como uma mecânica. A mecânica existe? Sim! Desempenha um papel importante? Sim! O materialismo metafísico tem, pois, razão em afirmar isso, mas, é um erro ver só o movimento mecânico.
Naturalmente, somos levados a ver um só lado das coisas e das pessoas. Se julgamos um camarada, vemos, quase sempre, apenas o seu lado bom ou o mau. É preciso ver um e outro, sem o que não seria possível ter quadros nas organizações. Na prática política, o método do julgamento unilateral leva ao sectarismo. Se encontramos um adversário pertencente a uma organização reacionária, julgamo-lo segundo os seus chefes.
E, no entanto, não é mais, talvez, que um modesto empregado revoltado, descontente, e não o devemos julgar como a um importante patrão fascista. Pode, da mesma maneira, aplicar-se este raciocínio aos patrões, e compreender que, se nos parecem maus, é, muitas vezes, porque eles próprios são dominados pela estrutura da sociedade, e que, noutras condições sociais, seriam, talvez, diferentes.
Se atendermos à unidade dos contrários, consideraremos as coisas sob os seus múltiplos aspectos. Veremos, portanto, que esse reacionário é reacionário, por um lado, mas, por outro, é um trabalhador, havendo nele uma contradição. Investigando, verificaremos porque aderiu a essa organização, procurando, ao mesmo tempo, indagar porque deveria não ter aderido. E, então, julgaremos e discutiremos, assim, de uma maneira menos sectária.
Devemos, pois, de acordo com a dialética, considerar as coisas sob todos os ângulos que se lhe possam distinguir.
Para resumir, e como conclusão teórica, diremos: as coisas mudam, porque encerram uma contradição interna (elas próprias e os seus contrários). Os contrários estão em conflito, e as mudanças nascem desses conflitos; assim, a mudança é a solução do conflito.
O capitalismo contém esta contradição interna, esse conflito entre o proletariado e a burguesia; a mudança explica-se por tal conflito, e a transformação da sociedade capitalista em socialista é a sua supressão.
Há mudança, movimento, onde haja contradição. Esta é a negação da afirmação, e quando o terceiro termo, a negação da negação, se alcança, aparece a solução, porque, nesse momento, a razão da contradição é eliminada, ultrapassada.
Pode, pois, dizer-se que, se as ciências: a química, a física, a biologia etc., estudam as leis da mudança que lhes são particulares, a dialética estuda as mais gerais. Engels disse: A dialética é apenas a ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento. (59)

(53) Fríedrích ENGELS: “Anti-Duhring” (54) Friedrich ENGELS: “Anti-Duhring” (55) Karl MARX e Friedrich ENGELS: “Manifesto do Partido comunista”, Ed. Avante (56) Friedridh ENGELS, “Ludwig Feuerbach” (57) “A história das ciências é a da eliminação progressiva do erro, isto é, da sua substituição por um erro novo, mas cada vez menos absurdo”. (ENGELS) (58) Friedrich ENGELS: “Ludwig Feuerbach” LEITURAS: ENGELS: “Anti-Dühring”, capítulo XIII: Dialética. Negação da negação, p. 161. Capítulo XIV: Conclusão, p. 175. LÉNINE: “Karl Marx e a sua doutrina”: A dialética.

QUARTA LEI: TRANSFORMAÇÃO DA QUANTIDADE EM QUALIDADE

I. Reformas ou revolução: 1. A argumentação política. 2. A argumentação histórica. 3. A argumentação científica.
II. O materialismo histórico: 1. Como explicar a história? 2. A história é obra dos homens.
Resta-nos, agora, antes de abordar o problema da aplicação da dialética à história, estudar sua última lei.
Isso vai-nos ser facilitado pelos estudos que acabamos de fazer, e em que vimos o que é a negação da negação e o que se entende por unidade dos contrários.
Como sempre, procedemos por exemplos.
I.  Reformas ou revolução?
Diz-se, falando da sociedade: é preciso recorrer a reformas ou fazer a revolução?
Discute-se para saber se, para transformar a sociedade capitalista numa socialista, se alcançará esse fim por reformas sucessivas ou por uma transformação brusca: a revolução.
Perante este problema, recordemos o que já estudamos. Toda a transformação é o resultado de uma luta de forças opostas. Se uma coisa evolui, é porque contém em si o seu contrário, sendo cada coisa uma unidade de contrários. Constata-se a luta dos contrários e a transformação da coisa no seu contrário. Como se faz essa
transformação? É o novo problema que se põe.
Pode pensar-se que tal transformação se efetua pouco a pouco, por uma série de pequenas transformações, que a maçã verde se transforma em madura por uma série de pequenas mudanças progressivas.
Muitas pessoas pensam, assim, que a sociedade se transforma pouco a pouco e que o resultado de uma série dessas pequenas transformações será a transformação da sociedade capitalista em socialista. Pequenas transformações que são as reformas, sendo o seu total, a soma das pequenas mudanças graduais, que nos dará uma sociedade nova.
É esta a teoria a que se chama reformismo. Os partidários de tais teorias chamam-se reformistas, não porque reclamem reformas, mas porque pensam que elas bastam, que, acumulando-se, devem, insensivelmente, transformar a sociedade.
Examinemos se isso é verdade:
1. A argumentação política.
Temos o exemplo da URSS, cuja mudança não se deu por reformas, mas pela revolução. Vemos, que em outros países onde se ensaiou este sistema, não sendo pela revolução, os resultados foram negativos. A transformação da sociedade capitalista - a sua destruição - só se dará pela revolução.
2. A argumentação histórica.
É verdade que, de uma maneira geral, as coisas se transformam por pequenas mudanças, por reformas?
Vejamos sempre os fatos. Se examinarmos as mudanças históricas, veremos que não se produzem indefinidamente, que não são contínuas. Chega um momento em que, em vez de pequenas mudanças a mudança se faz por um salto brusco.
Na história das sociedades, os acontecimentos marcantes que verificamos são mudanças bruscas, revoluções; mesmo os que não conhecem a dialética sabem, nos nossos dias, que se produziram mudanças violentas na história; no entanto, até ao século XVII, julgava-se que “a natureza não dá saltos”; não queriam ver as
transformações bruscas na continuidade das mudanças. Mas, a ciência interveio, e, pelos fatos, demonstrou que se faziam mudanças bruscamente. A Revolução burguesa de 1789 abriu ainda melhor os olhos; era ela própria um exemplo evidente de nítida ruptura com o passado. E acabou-se percebendo que todas as etapas decisivas da história foram e eram perturbações importantes, bruscas, súbitas. Por exemplo: de amigáveis que eram, as relações entre tal e tal Estado tornaram-se mais frias, depois tensas, agravaram-se, tomaram um caráter de hostilidade - e, de repente, era a guerra, brusca ruptura na continuidade dos acontecimentos. Ou, ainda: na Alemanha, depois da guerra de 1914-18, houve uma subida gradual do fascismo, depois, um dia, Hitler tomou o poder - a Alemanha entrou numa nova etapa histórica.
Hoje, os que negam essas bruscas mudanças pretendem que são acidentes, sendo um acidente uma coisa que acontece e poderia não acontecer.
Assim se explicam as revoluções na história das sociedades: “São acidentes”.
Explica-se, por exemplo, no que respeita à história da França, que a queda de Luís XVI e a Revolução francesa aconteceram porque Luís XVI era um homem fraco e indolente: “Se tivesse sido um homem enérgico, não teríamos tido a Revolução”. Lê-se mesmo que, se, em Varennes não tivesse prolongado a sua refeição, não o prenderiam e o curso da história teria sido outro. Portanto, a Revolução francesa é, digamos, um acidente.
A dialética, pelo contrário, reconhece que as revoluções são necessidades. Há, na verdade, mudanças contínuas, mas, acumulando-se, acabam por produzir mudanças bruscas.
3. A argumentação científica. Tomemos o exemplo da água. Partamos de 0º, e façamos subir a sua temperatura de 1°, 2°, 3° até 98°: a mudança é contínua. Mas, isso pode continuar assim indefinidamente?
Vamos, ainda, até 99°, mas, a 100° temos uma mudança brusca: a água transforma-se em vapor.
Se, inversamente, de 99° descermos até 1º teremos de novo, uma mudança contínua, mas, não poderemos descer assim indefinidamente, porque, a 0º, a água se transforma em gelo.
De 1º a 99°, permanece sempre água; apenas a sua temperatura muda. É o que se chama uma mudança quantitativa, que responde à pergunta: “Quanto”, isto é, “que quantidade de calor tem a água?”. Quando se transforma em gelo ou em vapor, temos uma mudança qualitativa, uma mudança de qualidade. Já não é água; tornou-se gelo ou vapor.
Quando a coisa não muda de natureza, temos uma mudança quantitativa (no exemplo da água, uma mudança de grau de calor, mas, não de natureza). Se muda de natureza, quando se torna outra coisa, a mudança é qualitativa.
Vemos, pois, que a evolução das coisas não pode ser indefinidamente quantitativa: transformando-se, sofrem, por fim, uma mudança qualitativa. A quantidade transforma-se em qualidade. É uma lei geral. Mas, como sempre, não devemos agarrar-nos unicamente a esta fórmula abstrata.
No livro de Engels, “Anti-Duhring”, no capítulo Dialética, quantidade e qualidade, encontraremos um grande número de exemplos que farão compreender que, em tudo, como nas ciências da natureza, se verifica a exatidão da lei segundo a qual em certos graus de mudança quantitativa, produz-se, subitamente, uma conversão qualitativa. (60)
Eis um novo exemplo, citado por H. Wallon, no VII volume da “Enciclopédia francesa” (em que nos remete a Engels): a energia nervosa, acumulando-se numa criança, provoca o riso; mas, se continua a aumentar, o riso transforma-se em lágrimas; assim, as crianças que se excitam e riem muito, acabam por chorar.
Daremos um último exemplo bem conhecido: o do homem que apresenta a sua candidatura a um mandato qualquer. Se forem precisos 4500 votos para obter a maioria absoluta, o candidato não é eleito com 4499, continua a ser, apenas, um candidato. Com um voto mais, a mudança quantitativa determina uma qualitativa,
uma vez que o candidato, que era, se torna um eleito.
Esta lei traz-nos a solução do problema: reforma ou revolução.
Os reformistas dizem-nos: “Quereis coisas impossíveis, que apenas acontecem por acidente; sois utopistas”.
Mas, com esta lei, vemos bem quais são os que sonham com coisas impossíveis! O estudo dos fenômenos da natureza e da ciência mostra-nos que as mudanças não são indefinidamente contínuas, mas que, num dado momento, se tornam bruscas. Não somos nós que, arbitrariamente, o afirmamos, é a ciência, a natureza, a realidade!
Pode, então, perguntar-se: que papel representamos nós nessas transformações bruscas?
Vamos responder a esta pergunta, e desenvolver tal problema com a aplicação da dialética à história. Eis nos chegando a uma parte muito célebre do materialismo dialético: o materialismo histórico.
O que é o materialismo histórico? É simplesmente, agora que se conhece o que é a dialética, a aplicação desse método à história das sociedades humanas.
Para compreender isto melhor, é necessário precisar o que é a história. Quem diz história diz mudança, e mudança na sociedade. A sociedade tem uma história, no decurso da qual muda continuamente; vemos produzirem-se nela grandes acontecimentos. Então, põe-se o seguinte problema: uma vez que, na história, as
sociedades mudam, o que é que explica essas mudanças?
1. Como explicar a história?
É assim que nos perguntamos: “Que faz com que haja guerras? Os homens deveriam poder viver em paz!”.
A estas perguntas, vamos dar respostas materialistas.
A guerra, explicada por um cardeal, é uma punição de Deus; é uma resposta idealista, porque explica os acontecimentos por Deus; é explicar a história pelo espírito. Aqui, é o espírito que cria e faz a história.
Falar da Providência é, também, uma resposta idealista. É Hitler que, em “Mein Kampf”, nos diz que a história é obra da Providência, agradecendo-lhe ter posto o lugar do seu nascimento na fronteira austríaca.
Tornar Deus ou a Providência responsáveis pela história, eis uma teoria cômoda: os homens nada podem, e, por conseguinte, nada há a fazer contra a guerra, é preciso consenti-la.
Podemos nós, do ponto de vista científico, sustentar tal teoria, encontrar nos fatos a sua justificação? Não. A primeira afirmação materialista, nesta discussão, é que a história não é obra de Deus, mas dos homens.
Então, os homens podem agir sobre a história e impedir a guerra.
2. A história é obra dos homens.
Os homens fazem a sua história, seja qual for o caminho que tome, perseguindo cada um os seus próprios fins, conscientemente desejados, e são, precisamente, os resultados dessas numerosas vontades, atuando em sentidos diferentes, e as suas variadas repercussões sobre o mundo exterior que constituem a história.
Trata-se, também, por conseguinte, do que querem os numerosos indivíduos, tomados isoladamente. A vontade é determinada pela paixão ou pela reflexão... Mas, as alavancas que, por sua vez, determinam diretamente a paixão ou a reflexão são de natureza muito diversa... Ainda pode perguntar-se... quais as causas históricas que, nos cérebros dos homens que agem, se transformam nesses motivos. (61)
Este texto de Engels diz-nos, portanto, que são os homens que agem segundo as suas vontades, mas estas não se orientam sempre no mesmo sentido! O que é que determina, faz, então, as ações dos homens? Por que não caminham as suas vontades no mesmo sentido?

O MATERIALISMO HISTÓRICO
As Forças Motrizes da História

I. Um erro a evitar. II. O “ser social” e a consciência. III. Teorias idealistas.
IV. O “ser social” e as condições de existência. V. As lutas das classes, motor da história.
Desde que se ponha a pergunta: de onde vêm as nossas ideias? Vê-se que é preciso ir mais longe nas nossas investigações. Se raciocinarmos como os materialistas do século XVIII, que pensavam que “o cérebro segrega o pensamento como o fígado a bílis”, responderemos a tal pergunta que é a natureza que produz o espírito, e que, por conseguinte, as nossas ideias são o produto da natureza, do cérebro.
Diremos, pois, que à história é feita da ação dos homens, impelidos pela sua vontade, sendo esta a expressão das suas ideias, vindo elas próprias do seu cérebro. Mas, atenção!.
I. Um erro a evitar.
Se explicarmos que a grande Revolução é o resultado da aplicação das ideias nascidas do cérebro dos filósofos, será uma explicação limitada, insuficiente, e uma má aplicação do materialismo.
Porque o que é preciso ver, é por que as ideias lançadas pelos pensadores dessa época foram retomadas pelas massas. Por que é que não era só Diderot a conhecê-las, por que razão, desde o século XVI, uma grande maioria de cérebros elaboravam as mesmas ideias?
É porque os cérebros tinham, subitamente, o mesmo peso, as mesmas circunvoluções? Não. Há mudanças nas ideias, não se produziu qualquer alteração na caixa craniana.
Esta explicação das ideias pelo cérebro parece ser uma explicação materialista. Mas, falar do cérebro de Diderot é, na realidade, falar das ideias do cérebro de Diderot; é, pois, uma teoria materialista falsa, abusiva, em que vemos, com as ideias, renascer a tendência idealista.
Voltemos ao encadeamento: a história - ação - vontade - ideias. As ideias têm um sentido, um conteúdo: a classe operária, por exemplo, luta pela queda do capitalismo. Isto é pensado pelos operários em luta. Pensam, porque têm um cérebro, certamente, e este é, portanto, uma condição necessária para pensar; mas não uma condição suficiente. O cérebro explica o fato material de ter ideias, mas não que se tenha umas ideias em vez de outras.
Tudo o que põe os homens em movimento deve necessariamente passar pelo cérebro, mas a forma que isso toma nele depende das circunstâncias. (63)
Como podemos, pois, explicar o conteúdo das nossas ideias, isto é, como nos vem a ideia de derrubar o capitalismo?
II. — O “ser social” e a consciência.
Sabemos que as nossas ideias são o reflexo das coisas; os fins que aquelas contêm são também o reflexo destas, mas de que coisas?
Para responder a esta pergunta, é preciso ver onde vivem os homens e onde se manifestam as suas ideias.
Constatamos que vivem numa sociedade capitalista, e que as suas ideias se manifestam nessa sociedade e dela lhes vêm.
Não é, pois, a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência. (64)
Nesta definição, o que Marx chama “o seu ser” são os homens, é o que nós somos; a “consciência” é o que pensamos, o que queremos.
Lutamos por um ideal profundamente arraigado em nós, diz-se de uma maneira geral, e daí resulta que é a nossa consciência que determina o nosso ser; agimos porque o pensamos, o queremos.
É um grande erro falar assim, porque é, na verdade, o nosso ser social que determina a nossa consciência.
Um “ser” proletário pensa como proletário e um “ser” burguês pensa como burguês (veremos, em seguida, porque não é, aliás, sempre assim). Mas, de uma maneira geral, pensa-se de maneira diferente, num palácio e numa choupana. (65)
III. Teorias idealistas.
Os idealistas dizem que um proletário ou um burguês são uma coisa ou outra porque pensam desta ou daquela maneira.
Nós, pelo contrário, dizemos que, se pensam como um proletário ou um burguês, é porque são uma coisa ou outra. Um proletário tem uma consciência de classe proletária porque é proletário.
O que devemos notar bem, é que a teoria idealista comporta uma consequência prática. Se se é burguês, diz-se, é porque se pensa como um burguês; portanto, para deixar de o ser, basta mudar a maneira de pensar em causa, e, para fazer parar a exploração burguesa, basta fazer um trabalho de convicção junto dos patrões.
É esta uma teoria defendida pelos socialistas cristãos; foi, também, a dos fundadores do socialismo utópico.
Mas, é, ainda, a teoria dos fascistas, que lutam contra o capitalismo, não para o suprimir, mas para o tornar mais “razoável”! Quando o patronato compreender que explora os operários, dizem, deixará de o fazer. Eis uma teoria completamente idealista, cujos perigos se veem.
IV. O “ser social” e as condições de existência.
Marx fala-nos do “ser social”. Que entende ele por isso?
O “ser social” é determinado pelas condições materiais de existência em que os homens vivem na sociedade.
Não é a consciência que determina as suas condições materiais de existência, mas estas que determinam aquela.
A que se chama as condições materiais de existência? Na sociedade, há ricos e pobres, e a sua maneira de pensar é diferente, diferentes as suas ideias sobre um mesmo assunto. Tomar o metrô, para um pobre, um desempregado, é um luxo, mas, para um rico que teve um automóvel, é degradante.
As ideias do pobre acerca do metrô tem-nas por ser pobre, ou é porque o toma que as possui? É por ser pobre. Ser pobre é a sua condição de existência.
Então, é preciso ver porque razão há ricos e pobres, para poder explicar as condições de existência dos homens.
Um grupo de homens ocupando no processo econômico de produção uma posição análoga (isto é, em regime capitalista atual, possuindo os meios de produção - ou, pelo contrário, trabalhando em meios de produção que não lhes pertencem), e, por conseguinte, tendo, em certa medida, as mesmas condições materiais de existência, forma uma classe, mas a noção de classe não se reduz à de riqueza ou de pobreza.
Um proletário pode ganhar mais do que um burguês; não é, por isso, menos proletário, uma vez que depende de um patrão e a sua vida não está nem assegurada nem é independente. As condições materiais de existência não são constituídas só pelo dinheiro ganho, mas pela função social, e, então, temos o seguinte encadeamento.
Os homens fazem a sua história pela sua ação segundo a sua vontade, que é a expressão das suas ideias. Estas vêm das suas condições materiais de existência, isto é, da sua radicação a uma classe.
V. As lutas das classes, motor da história.
Os homens agem porque têm certas ideias. Devem estas às suas condições materiais de existência, porque pertencem a esta ou àquela classe. Isso não quer dizer que haja só duas classes na sociedade: há certa quantidade, em que duas, principalmente, estão em luta - burguesia e proletariado.
Logo, sob as ideias encontram-se as classes.
A sociedade está dividida em classes, que lutam umas com as outras. Assim, ao examinarmos as ideias dos homens, constata-se que estão em conflito, e, sob elas, encontramos as classes, que também o estão.
Por conseguinte, as forças motrizes da história, isto é, o que explica a história é a luta das classes.
Se tomarmos como exemplo o déficit permanente do orçamento do Estado, vemos que há duas soluções: uma consiste em continuar o que se chama a ortodoxia financeira: economias, empréstimos, novos impostos etc.; a outra solução consiste em fazer pagar os ricos.
Constatamos uma luta política à volta destas ideias, e, de uma maneira geral, “lamenta-se” que não se possa chegar a um acordo sobre tal assunto; mas, o marxista quer compreender, e procura o que se encontra sob a luta política; descobre, então, a luta social, isto é, a luta das classes. Luta entre os que são partidários da
primeira solução (os capitalistas) e os que são partidários de fazer pagar os ricos (as classes médias e o proletariado).
Está provado, por conseguinte, dirá Engels, que, na história moderna, pelo menos, todas as lutas políticas são lutas das classes e todas as lutas emancipadoras de classes, apesar da sua forma necessariamente política - porque toda a luta de classes é uma luta política - giram, em última análise, em torno da emancipação económica. (66)
Temos, assim, um elo a juntar ao encadeamento que conhecemos para explicar a história; vejamos: a ação, a vontade, as ideias, sob as quais se encontram as classes, e, por detrás destas, a economia. São, portanto, na verdade, as lutas de classes que explicam a história, mas é a economia que determina as classes. Se quisermos explicar um fato histórico, devemos examinar quais são as ideias em luta, procurar, em seguida, as classes sob as ideias e definir, enfim, o modo econômico que caracteriza as classes.
Pode perguntar-se, ainda, de onde vêm as classes e o modo econômico (e os dialéticos não têm medo de pôr todas estas perguntas sucessivas, porque sabem que é preciso encontrar a origem de todas as coisas).
Se estudarmos, em pormenor, podemos já dizer: para saber de onde vêm as classes, é necessário estudar a história da sociedade, e ver-se-á, então, que as classes em presença não foram sempre as mesmas. Na Grécia: os escravos e os amos; na idade média: os servos e os senhores; em seguida, simplificando esta enumeração: a burguesia e o proletariado.
Constatamos, neste quadro, que as classes mudam, e, se procurarmos por que, veremos que é porque as condições econômicas mudaram (as condições econômicas são: a estrutura da produção, da circulação, da repartição, do consumo das riquezas, e, como condição última de tudo o resto, a maneira de produzir, a técnica).
Eis, agora, um texto de Engels: Burguesia e proletariado formaram-se, uma e outro, no seguimento de uma transformação das condições econômicas, mais exatamente, do modo de produção. É a passagem, primeiro, do trabalho corporativo à manufatura, e desta à grande indústria, com o seu modo de exploração mecânica a vapor, que desenvolveu essas duas classes. (67)
Vemos, pois, em última análise, que as forças motrizes da história nos são dadas pelo seguinte encadeamento:
a) A história é obra dos homens. b) A ação, que faz a história, é determinada pela sua vontade. c) Esta vontade é a expressão das suas ideias. d) Essas ideias são o reflexo das condições sociais em que vivem. e) São tais condições sociais que determinam as classes e as suas lutas. f) As próprias classes são determinadas pelas condições econômicas.
Para precisar sob que formas e em que condições se desenrolam este encadeamento, diremos que:
1. As ideias traduzem-se, na vida, no plano político. 2. As lutas de classes, que se encontram por trás das ideias, traduzem-se no plano social. 3. As condições econômicas (que são determinadas pelo estado da técnica) traduzem-se no plano econômico.

DE ONDE VÊM AS CLASSES E AS CONDIÇÕES ECONÔMICAS

I. Primeira grande divisão do trabalho. II. Primeira divisão da sociedade em classes.
III. Segunda grande divisão do trabalho. IV. Segunda divisão da sociedade em classes. V. O que determina as condições econômicas. VI. Os modos de produção. VII. Observações.
Vimos que as forças motrizes da história são, em última análise, as classes, e as suas lutas determinadas pelas condições econômicas.
Isto, pelo seguinte encadeamento: os homens têm na cabeça ideias que os fazem agir. Estas nascem nas condições de existência materiais em que eles vivem. Tais condições são determinadas pela posição social que ocupam na sociedade, isto é, pela classe à qual pertencem, e as próprias classes são determinadas pelas
condições econômicas nas quais evolui a sociedade.
Mas, então, é-nos preciso ver o que determina as condições econômicas e as classes que criam. É o que vamos estudar.
I. Primeira grande divisão do trabalho.
Ao estudar a evolução da sociedade, e tomando os fatos no passado, constata-se, primeiramente, que a divisão da sociedade em classes não existiu sempre.
A dialética quer que investiguemos a origem das coisas; ora, constatamos que, num passado muito distante, não havia classes. Em “A Origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Engels diz-nos: Em todos os estádios inferiores da sociedade, a produção era essencialmente comum; não há uma classe, uma categoria de trabalhadores, depois outra. O consumo dos produtos criados pelos homens era também comum. É o comunismo primitivo. (68)
Todos os homens participam na produção; os instrumentos de trabalho individuais são propriedade privada, mas os de que se servem em comum pertencem à comunidade. A divisão do trabalho não existe neste estádio inferior senão entre os sexos. O homem caça, pesca etc., a mulher cuida da casa. Não há interesses particulares ou “privados” em jogo.
Mas, os homens não permaneceram neste período, e a primeira grande mudança na sua vida será a divisão do trabalho na sociedade.
No modo de produção, introduz-se lentamente a divisão do trabalho. (69)
Este primeiro fato produziu-se onde os homens se encontravam em presença de animais, que se deixaram, primeiro, domesticar, depois, criar. Algumas das tribos mais avançadas... fizeram da criação o seu principal ramo de trabalho. Tribos de pastores destacaram-se da massa dos Bárbaros. Foi a primeira grande divisão do trabalho. (70)
Temos, portanto, como primeiro modo de produção: caça, pesca; como segundo: criação de gado, que dá origem às tribos de pastores. É esta primeira divisão do trabalho que é a base da primeira divisão da sociedade em classes.
II. Primeira divisão da sociedade em classes.
O crescimento da produção em todos os seus ramos - criação de gado, agricultura, trabalhos domésticos - dava à força de trabalho humano a capacidade de criar mais produtos do que era necessário para o seu sustento. Aumentou, ao mesmo tempo, o total diário de trabalho que competia a cada membro da comunidade doméstica ou da família isolada. Tornou-se desejável englobar novas forças de trabalho. A guerra forneceu-as: os prisioneiros foram transformados em escravos. Aumentando a produção do trabalho, e, por conseguinte, a riqueza, e alargando o campo da produção, a primeira grande divisão social do trabalho tinha, no conjunto destas condições históricas, por consequência necessária a escravatura. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande cisão da sociedade em duas classes: amos e escravos, exploradores e explorados. (71)
Chegamos, assim, ao limiar da civilização... No estádio mais inferior, os homens só produziam em função das suas próprias necessidades; alguns atos de troca que se faziam eram isolados, e apenas à base do supérfluo de que por acaso dispunham. No estádio médio da barbárie, encontramos já, entre os povos pastores, o gado como propriedade... de onde, ainda, as condições de uma troca regular. (72)
Temos, portanto, neste momento, duas classes na sociedade: amos e escravos. Depois, a sociedade vai continuar a viver e a sofrer novas transformações. Uma nova classe vai nascer e crescer.
III. Segunda grande divisão do trabalho.
A riqueza cresce rapidamente, mas sob a forma de riqueza individual; a tecelagem, o trabalho dos metais e os outros ofícios, que se separavam cada vez mais, deram à produção uma variedade e uma perfeição crescentes: a agricultura, além dos cereais... fornece, doravante, o azeite e também o vinho... Um trabalho tão variado já não podia ser desempenhado pelo mesmo indivíduo; a segunda grande divisão do trabalho
efetuou-se; os ofícios afastavam-se da agricultura. O aumento constante da produção e, com ele, o da produtividade do trabalho, aumentou o valor da força de trabalho humano; a escravatura... torna-se, agora, um elemento essencial do sistema social... Às dúzias, obrigam-nos (os escravos) ao trabalho... Da cisão da produção em dois ramos principais, a agricultura e os ofícios, nasce a produção direta para a troca, a
mercantil, e, com ela, o comércio... (73)
IV. Segunda divisão da sociedade em classes.
Assim, a primeira grande divisão do trabalho aumenta o valor do trabalho humano, cria um aumento de riqueza, que aumenta de novo o valor do trabalho e obriga a uma segunda divisão deste: ofícios e agricultura.
Nesse momento, o crescimento contínuo da produção e, paralelamente, do valor da força do trabalho humano, torna “indispensáveis” os escravos, cria a produção mercantil e, com ela, uma terceira classe: a dos mercadores.
Temos, pois, nessa altura, na sociedade, uma tripla divisão do trabalho e três classes: agricultores, artesãos, mercadores. Vemos aparecer, pela primeira vez, uma classe que não participa na produção, e essa, a dos mercadores, vai dominar as outras duas.
O estádio superior da barbárie oferece-nos uma divisão ainda maior do trabalho... daí resulta uma parte sempre crescente dos resultados do trabalho diretamente produzido para troca, e, com isso, a elevação desta... à altura da necessidade vital da sociedade.
A civilização consolida e reforça todas estas divisões do trabalho já existentes, especialmente o antagonismo entre a cidade e o campo... e acrescenta uma terceira
divisão, que lhe é própria e de uma importância capital: cria uma classe que já não se ocupa da produção, mas, unicamente, da troca dos produtos — os mercadores. Esta torna-se a intermediária entre dois produtores.
Sob pretexto... de se tornar, assim, a classe mais útil da população... adquire rapidamente riquezas enormes e uma influência social proporcionada... é chamada... a um domínio sempre maior da produção, até que, no fim de contas, origina, também ela, um produto para si própria - as crises comerciais periódicas. (74)
Vemos, portanto, o encadeamento que, partindo do comunismo primitivo, nos conduz ao capitalismo.
1. Comunismo primitivo. 2. Divisão entre tribos selvagens e pastores (primeira divisão do trabalho: amos, escravos). 3. Divisão entre os agricultores e os artesãos (segunda divisão do trabalho). 4. Aparecimento da classe dos mercadores (terceira divisão do trabalho) que 5. Dá origem às crises comerciais periódicas (capitalismo).
Sabemos, agora, de onde vêm as classes, e resta-nos estudar:
V. O que determina as condições econômicas.
Devemos primeiro, muito brevemente, passar em revista as diversas sociedades que nos precederam.
Faltam os documentos para estudar em detalhe a história daquelas que precederam as sociedades antigas; mas, sabemos que, por exemplo, entre os Gregos, existiam amos e escravos, começando já a desenvolver-se a classe dos mercadores. Em seguida, na idade média, a sociedade feudal, com senhores e servos, permite aos mercadores tomarem cada vez mais importância. Agrupam-se perto dos castelos, no seio dos burgos (de onde o nome de “burguês”); por outro lado, na idade média, antes da produção capitalista, apenas existia a pequena produção, que tinha por condição primeira que o produtor fosse proprietário dos seus instrumentos de trabalho. Os meios de produção pertenciam ao indivíduo e estavam adaptados só ao uso individual.
Eram, por conseguinte, mesquinhos, pequenos, limitados. Concentrar e aumentar esses meios de produção, transformá-los em possantes alavancas da produção moderna, era o papel histórico da produção capitalista e da burguesia...
A partir do século XV, a burguesia executou esta obra, percorrendo as três fases históricas: da cooperação simples, da manufatura e da grande indústria... Ao arrancar esses meios de produção ao seu isolamento, concentrando-os... muda-se-lhe a própria natureza e, de individuais, tornam-se sociais. (75)
Vemos, pois, que, paralelamente à evolução das classes (amos e escravos, senhores e servos), evoluem as condições de produção, de circulação, de distribuição das riquezas, isto é, as condições econômicas, e que esta evolução econômica segue, passo a passo e paralelamente, a dos modos de produção. São, portanto, os modos de produção.
VI. Os modos de produção:
Isto é, o estado dos instrumentos, ferramentas, a sua utilização, os métodos de trabalho, numa palavra, o estado da técnica que determina as condições econômicas.
Se, outrora, as forças de um individuo ou, quando muito, do uma família chegavam para fazer trabalhar os antigos meios de produção isolados, seria preciso, agora, todo um batalhão de operários para pôr em movimento esses meios de produção concentrados. O vapor e a máquina-instrumento completaram essa metamorfose... A oficina individual (é substituída) pela fábrica, que reclama a cooperação de centenas, de milhares de operários. A produção transforma-se, de uma série de atos individuais, que era, numa de atos sociais. (76)
Vemos que a evolução dos modos de produção transformou totalmente as forças produtivas. Ora, se os instrumentos de trabalho se tornaram coletivos, o regime de propriedade permaneceu individual! As máquinas, que só podem funcionar havendo uma coletividade, permaneceram propriedade de um só homem. Assim, vemos que
(as forças produtivas) obrigam ao reconhecimento prático do seu caráter real, o de forças produtivas sociais... impõem a grandes quantidades de meios de produção a socialização, que se manifesta sob a forma de sociedades por ações... Esta forma, também ela, torna-se insuficiente... O Estado deve tomar a direção de tais forças produtivas... a burguesia tornou-se supérflua... Todas as funções sociais dos capitalistas são substituídas... por empregados assalariados. (77)
Assim nos aparecem as contradições do regime capitalista: Por um lado, aperfeiçoamento do maquinismo tornado obrigatório... pela concorrência, e equivalendo à eliminação sempre crescente de operários... Por outro, extensão ilimitada da produção, igualmente obrigatória. Em qualquer dos casos, desenvolvimento inaudito das forças produtivas, excesso de oferta sobre a procura, superprodução, crises... o que nos leva a: superabundância de produção... e de operários sem trabalho, sem meios de existência. (78)
Há contradição entre o trabalho tornado social, coletivo, e a propriedade que permaneceu individual. E, então, com Marx, diremos: De formas de desenvolvimento das forças produtivas, que eram, essas relações tornaram-se entraves. Então, abre-se um período de revolução social. (79)
VII. Observações.
Antes de terminar este capítulo, é necessário fazer algumas observações e sublinhar que, neste estudo, encontramos todos os caracteres e leis da dialética que acabamos de estudar, com efeito, acabamos de percorrer, muito rapidamente, a história das sociedades, das classes e dos modos de produção. Vemos como cada parte deste estudo é dependente das outras. Constatamos que esta história é essencialmente móvel e que as mudanças que se produzem em cada estádio da evolução das sociedades são provocadas por uma luta interna, luta entre os elementos de conservação e de progresso, luta que conduz à destruição de cada sociedade e ao nascimento de outra. Qualquer delas tem caráter, estrutura bem diferentes da que a precedeu. Essas transformações radicais operam-se depois de uma acumulação de fatos, que, em si mesmos, parecem insignificantes, mas, num certo momento, criam, pela sua acumulação, uma situação de fato que provoca uma mudança brutal, revolucionária.
Aí, reencontramos, pois, os caracteres e as grandes leis gerais da dialética, isto é: A interdependência das coisas e dos fatos; O movimento e a mudança dialética; O autodinamismo; A contradição; A ação recíproca; E a evolução por saltos (transformação da quantidade em qualidade).

O MATERIALISMO DIALÉTICO E AS IDEOLOGIAS

Aplicação do método dialético às ideologias
I. Qual é a importância das ideologias para o marxismo? II. O que é uma ideologia? (Fator e formas ideológicos.) III. Estrutura econômica e estrutura ideológica. IV. Consciência verdadeira e falsa consciência. V. Ação e reação dos fatores ideológicos. VI. Método de análise dialética. VII. Necessidade da luta ideológica. VII. Conclusão.
I. Qual é a importância das ideologias para o marxismo?
Costuma ouvir-se dizer que o marxismo é uma filosofia materialista que nega o papel das ideias na história, o papel do fator ideológico, e apenas quer considerar as influências econômicas.
Isso é falso. O marxismo não nega o papel importante que o espírito, a arte, as ideias têm na vida. Bem pelo contrário, dá uma importância particular a essas formas ideológicas, e vamos terminar este estudo dos princípios elementares do marxismo, examinando como o método do materialismo dialético se aplica às ideologias; vamos ver qual é o papel das ideologias na história, a ação do fator ideológico e o que é a
forma ideológica.
Esta parte do marxismo que vamos estudar é a mais desconhecida de tal filosofia. A razão é que, durante muito tempo, tratou-se e difundiu-se, sobretudo, a parte do marxismo que estuda a economia política.
Procedendo assim, separava-se arbitrariamente esta matéria, não só do grande “todo” que forma o marxismo, mas também das suas bases; porque o que permitiu fazer da economia política uma verdadeira ciência foi o materialismo histórico, que é, como vimos, uma aplicação do materialismo dialético.
Pode assinalar-se, de passagem, que esta maneira de proceder provém, na verdade, do espírito metafísico, que conhecemos e de que temos tanto mal para nos corrigirmos. É, repetimo-lo, na medida em que isolamos as coisas, em que as estudamos de uma maneira unilateral, que cometemos erros.
As más interpretações do marxismo provêm, pois, de não se ter insistido suficientemente no papel das ideologias na história e na vida. Separamo-las do marxismo, e, fazendo-o, separamos o marxismo do materialismo dialético, isto é, dele próprio!
É com prazer que vemos que, desde há alguns anos, graças, em parte, ao trabalho da Universidade Operária de Paris, à qual muitos milhares de alunos devem o conhecimento do marxismo, graças, também, ao trabalho dos nossos camaradas intelectuais que contribuíram com os seus trabalhos e livros, o marxismo reconquistou
o seu rosto verdadeiro e o lugar a que tem direito.
II. O que é uma ideologia? (Fator e formas ideológicos).
Vamos abordá-la neste capítulo, consagrado ao papel das ideologias, por algumas definições.
A que chamamos uma ideologia? Quem diz ideologia, diz, antes de tudo, ideia. A ideologia é um conjunto de ideias que forma um todo, uma teoria, um sistema ou mesmo, por vezes, simplesmente um estado de espírito.
O marxismo é uma ideologia que forma um todo e oferece um método de resolução de todos os problemas.
Uma ideologia republicana é um conjunto de ideias que encontramos no espírito de um republicano. Mas, uma ideologia não é só um conjunto de ideias puras, que se suporiam separadas de todo o sentimento (esta seria uma concepção metafísica); uma ideologia comporta necessariamente sentimentos, simpatias, antipatias, esperanças, crenças etc. Na ideologia proletária, encontramos os elementos ideais da luta de
classes, mas, também, sentimentos de solidariedade para com os explorados do regime capitalista, os “aprisionados”, sentimentos de revolta, de entusiasmo etc... Ê tudo isso que faz uma ideologia.
Vejamos, agora, aquilo a que se chama fator ideológico: é a ideologia considerada como uma causa ou uma força que age, que é capaz de influenciar, e é por isso que se fala da ação do fator ideológico. As religiões, por exemplo, são um fator ideológico que devemos ter em conta; têm uma força moral que age de maneira importante.
Que se entende por forma ideológica? Designa-se assim um conjunto de ideias particulares que formam uma ideologia num domínio especializado. A religião, a moral são formas da ideologia, do mesmo modo que a ciência, a filosofia, a literatura, a arte, a poesia. Se quisermos, pois, examinar qual é o papel da história da ideologia, em geral, e de todas as suas formas, em particular, conduziremos este estudo não separando a ideologia da história, isto é, da vida das sociedades, mas situando o papel da ideologia, dos seus fatores e das suas formas na e a partir da sociedade.
III. Estrutura econômica e estrutura ideológica.
Vimos, ao estudar o materialismo histórico, que a história das sociedades se explica pelo seguinte encadeamento: os homens fazem a história pela sua ação, expressão da sua vontade. Esta é determinada pelas ideias. Vimos que o que explica as ideias dos homens, isto é, a sua ideologia, é o meio social onde se manifestam as classes, que são, por sua vez, elas próprias determinadas pelo fator econômico, isto é, no fim
de contas, pelo modo de produção.
Vimos, também, que entre o fator ideológico e o social se encontra o político, que se manifesta na luta ideológica como expressão da luta social.
Se, portanto, examinarmos a estrutura da sociedade à luz do materialismo histórico, vemos que, na base, se encontra a estrutura econômica, depois, acima dela, a social, que sustenta a política, e, por fim, a estrutura ideológica.
Verificamos que, para os materialistas, a estrutura ideológica é o resultado, a cúpula do edifício social, enquanto que, para os idealistas, a estrutura ideológica é a base.
Na produção social da sua existência, os homens entram em determinadas relações, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um dado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas de consciência social (isto é, formas ideológicas). O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral. (80)
Vemos, por conseguinte, que é a estrutura econômica a base da sociedade. Diz-se, também, que é a infraestrutura (o que significa a estrutura inferior).
A ideologia, que compreende todas as formas: a moral, a religião, a ciência, a poesia, a arte, a literatura, constitui a supra ou superestrutura (que significa: estrutura que está no topo).
Sabendo, como o demonstra a teoria materialista, que as ideias são o reflexo das coisas, que é o nosso ser social que determina a consciência, diremos, pois, que a superestrutura é o reflexo da infraestrutura.
Eis um exemplo de Engels, que o demonstra bem: O dogma calvinista respondia às necessidades da burguesia mais avançada da época. A sua doutrina da predestinação era a expressão religiosa do fato de que, no mundo comercial da concorrência, o sucesso e o insucesso não dependem, nem da atividade nem da habilidade do homem, mas de circunstâncias independentes do seu controle. Estas não dependem nem daquele que quer nem do que trabalha, estão à mercê de forças econômicas superiores e desconhecidas; e isso é particularmente verdadeiro numa época de revolução econômica, quando todos os antigos centros de comércio e todas as estradas comerciais eram substituídos por outros, as Índias e a América abertas ao mundo e os artigos de fé econômica mais respeitáveis pela sua antiguidade - o valor relativo do ouro e da prata - começavam a oscilar e a desmoronar-se. (81)
Com efeito, que se passa na vida econômica para os mercadores? Estão em concorrência. Os mercadores, os burgueses fizeram a experiência desta concorrência, em que há vencedores e vencidos. Muitas vezes, os mais desembaraçados, os mais inteligentes são vencidos pela concorrência, por uma crise que sobrevém e os
abate. Tal crise é, para eles, uma coisa imprevisível, parece-lhes uma fatalidade, e é esta ideia de que, sem razão, os menos astutos sobrevivem, por vezes, à crise, que é transposta na religião protestante. É esta constatação, a que alguns “chegam” por acaso, que alimenta a ideia da predestinação, segundo a qual os homens devem suportar um destino fixado por Deus, para toda a eternidade.
Vemos, depois deste exemplo de reflexo das condições econômicas, de que maneira a superestrutura é o reflexo da infraestrutura.
Eis, ainda, outro exemplo: consideremos a mentalidade de dois operários não sindicalizados, isto é, não desenvolvidos politicamente; um trabalha numa grande fábrica, em que o trabalho é racionalizado, o outro, numa pequena oficina. É certo que ambos terão uma concepção diferente do patrão. Para um, ele será o explorador feroz, característico do capitalismo; o outro vê-lo-á como um trabalhador, certamente abastado, mas trabalhador, não tirano.
É, na verdade, o reflexo da sua condição de trabalho que determinará a sua maneira de compreender o patronato.
Este exemplo, que é importante, leva-nos, por ser necessário, a fazer algumas Observações.
IV. Consciência verdadeira e falsa consciência.
Acabamos de dizer que as ideologias são o reflexo das condições materiais da sociedade, que é o ser social que determina a consciência social. Poderia deduzir-se disso que um proletariado deve ter, automaticamente, uma ideologia proletária.
Mas, tal suposição não corresponde à realidade, porque há operários que não têm uma consciência de operário.
É preciso, pois, estabelecer uma distinção: as pessoas podem viver em determinadas condições, mas a consciência que possuem pode não corresponder à realidade. É ao que Engels chama: “ter uma falsa consciência”.
Exemplo: certos operários são influenciados pela doutrina do corporativismo, que é um regresso à idade média, ao artesanato. Neste caso, há consciência da miséria dos operários, mas não justa e verdadeira. A ideologia é bem um reflexo das condições de vida social, mas não fiel, exato.
Na consciência das pessoas, o reflexo é muitas vezes um reflexo “ao inverso”. Constatar o fato da miséria é um reflexo de condições sociais, mas tal reflexo torna-se falso quando se pensa que num retorno ao artesanato será a solução do problema. Constatamos, aqui, uma consciência em parte verdadeira, em parte falsa.
O operário que é monárquico tem, também, uma consciência há um tempo verdadeira e falsa. Verdadeira, porque quer suprimir a miséria que constata; falsa, porque pensa que um rei pode fazer isso. E, simplesmente porque raciocinou mal e escolheu mal a sua ideologia, esse operário pode tornar-se, para nós, um inimigo de classe, ainda que, no entanto, seja da nossa classe. Assim, ter uma consciência falsa é enganar-se ou ser enganado acerca da sua verdadeira condição.
Diremos, pois, que a ideologia é o reflexo das condições de existência, mas não é um reflexo fatal.
É-nos preciso, aliás, constatar que tudo se preparou para nos dar uma consciência falsa e desenvolver a influência da ideologia das classes dirigentes sobre as exploradas. Os primeiros elementos que recebemos de uma concepção da vida, a nossa educação, a nossa instrução, dão-nos uma consciência falsa. Os nossos laços
na vida, um fundo de provincianismo em alguns, a propaganda, a imprensa, a rádio falseiam também, por vezes, a nossa consciência.
Por conseguinte, o trabalho ideológico tem, pois, para nós, marxistas, uma extrema importância. É preciso destruir a consciência falsa, para adquirir uma verdadeira, não podendo, sem o trabalho ideológico, realizar-se essa transformação.
Os que consideram e dizem que o marxismo é uma doutrina fatalista não têm razão, uma vez que pensamos, na verdade, que as ideologias desempenham um grande papel na sociedade, e que é preciso ensinar e aprender essa filosofia que é o marxismo, para a fazer desempenhar o papel de um instrumento e de uma arma eficaz.
V. Ação e reação dos fatores ideológicos.
Vimos, pelos exemplos de consciência verdadeira e de consciência falsa, que não é preciso querer explicar sempre as ideias só pela economia e negar que tenham uma ação. Proceder assim seria interpretar o marxismo de uma maneira errada.
É certo que as ideias se explicam, em última análise, pela economia, mas também têm uma ação que lhes é própria.
(...) Depois da concepção materialista da história, o fator determinante nesta é, em última instância, a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos outra coisa. Se, depois, alguém deturpa isso, até dizer que o fator econômico é o único determinante, transforma esta proposição numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas as diversas partes da superestrutura... exercem igualmente a sua ação no decurso das lutas históricas, e determinam, de maneira preponderante, a forma, em muitos casos. Há ação e reação de todos esses fatores no seio dos quais o movimento econômico acaba por abrir o seu caminho, como qualquer coisa de forçado, através da multidão infinita de acasos. (82)
Vemos, pois, que nos é preciso examinar tudo antes de procurar a economia, e que, se esta é a causa em última análise, é necessário pensar sempre que não é a única.
As ideologias são os reflexos e os efeitos das condições econômicas, mas a relação entre elas não é simples, porque constatamos, também, uma ação recíproca das ideologias sobre a infraestrutura.
Se quisermos estudar o movimento de massas que se desenvolveu, em França, depois de 6 de Fevereiro de 1934, fá-lo-emos, ao menos, sob dois aspectos, para demonstrar o que acabamos de escrever.
1. Alguns explicam essa corrente, dizendo que a sua causa era a crise econômica. É uma explicação materialista, mas unilateral. Tem em conta apenas um fator: o econômico, aqui: a crise.
2. Este raciocínio é, pois, parcialmente exato, mas com a condição de que se lhe acrescente, como fator de explicação, o que pensam as pessoas: a ideologia. Ora, nessa corrente de massas, as pessoas são “antifascistas”, eis o fator ideológico. E, se as pessoas são antifascistas, é graças à propaganda que deu origem à Frente popular. Mas, para que esta propaganda fosse eficaz, era preciso um terreno favorável, e o que se pôde fazer em 1936 não era possível em 1932. Enfim, sabemos como, em seguida, esse movimento de massas e a sua ideologia influenciaram, por sua vez, a economia, pela luta social que desencadearam.
Vemos, portanto, neste exemplo, que a ideologia, que é o reflexo das condições sociais, se toma, por sua vez, uma causa dos acontecimentos.
O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc., assenta no desenvolvimento econômico. Mas todos reagem igualmente uns sobre os outros, do mesmo modo que sobre a base econômica. Isso não é assim porque a situação econômica é a causa, só ela é ativa, e tudo o resto é apenas ação passiva. Há, pelo contrário, ação e reação na base da necessidade econômica, que sempre prevalece em última instância. (83)
É assim, por exemplo, que a base do direito sucessório, suportando a igualdade do estádio de desenvolvimento da família, é uma base econômica. Todavia, será difícil demonstrar que em Inglaterra, por exemplo, a liberdade absoluta de testamentar, e, em França, a sua grande limitação não têm, em todas as suas particularidades, senão causas econômicas. Mas, de maneira muito importante, ambas reagem sobre a economia, pelo fato de influenciarem a repartição da fortuna. (84)
Para tomar um exemplo mais atual, retomaremos o dos impostos. Todos temos uma ideia sobre eles. Os ricos querem-nos reduzidos, sendo partidários dos impostos indiretos; os trabalhadores e as classes médias querem, pelo contrário, um sistema fiscal baseado no imposto direto e progressivo. Assim, pois, a ideia que fazemos dos impostos, e que é um fator ideológico, tem a sua origem na situação econômica de cada um, e foi criada, imposta pelo capitalismo. Os ricos querem conservar os seus privilégios, lutando por conservar o modo atual de imposição e reforçar as leis nesse sentido. Ora, estas, que vêm das ideias, reagem sobre a economia, porque matam o pequeno comércio e os artesãos, e precipitam a concentração capitalista.
Vemos, por conseguinte, que as condições econômicas engendram as ideias, mas que estas engendram, também, modificações nas condições econômicas, e é tendo em conta esta reciprocidade das relações que devemos examinar as ideologias, todas as ideologias; e é só em última análise, na raiz, que vemos as necessidades econômicas predominarem sempre.
Sabemos que são os escritores e os pensadores que têm por missão propagar, senão defender as ideologias.
Os seus pensamentos e escritos nem sempre são muito caracterizados, mas, de fato, mesmo nos que têm o aspecto de ser simples contos ou novelas, reencontramos sempre, pela análise, uma ideologia. Esta análise é uma operação muito delicada, e devemos fazê-la com muita prudência. Vamos indicar um método de análise dialética, que será de grande utilidade, mas, para que não se seja mecanicista nem queira explicar o que não é explicável, é preciso prestar muita atenção.
VI. Método de análise dialética.
Para aplicar bem o método dialético, é necessário conhecer muitas coisas, e, se desconhecemos o seu objeto, é preciso estudá-lo minuciosamente, sem o que se chega, simplesmente, a fazer caricaturas de julgamento.
Para proceder à análise dialética de um livro ou de um conto literário, vamos indicar um método, que poderá ser aplicado a outros assuntos.
a) É preciso, primeiro, prestar atenção ao conteúdo do livro ou do conto a analisar. Examiná-lo independentemente de toda a questão social, porque nem tudo vem da luta de classes e das condições econômicas.
Há influências literárias, e devemos ter isso em conta. Tentar ver a que “escola literária” pertence a obra. Ter em conta o desenvolvimento interno das ideologias. Praticamente, seria bom fazer um resumo do assunto a analisar e anotar o que mais impressionou.
b) Observar, em seguida, os tipos sociais dos heróis da intriga. Procurar a classe a que pertencem, examinar a ação das personagens e ver se, de qualquer maneira, o que se passa no romance pode ligar-se a um ponto de vista social.
Se tal não for possível, se, razoavelmente, não puder fazer-se isso, então vale mais abandonar a análise do que inventar. Não deve nunca inventar-se uma explicação.
c) Quando se encontrar qual é ou quais são as classes em jogo, é preciso procurar a base econômica, isto é, quais são os meios de produção e a maneira de produzir no momento em que se passa a ação do romance.
Se, por exemplo, for nos nossos dias, a economia é o capitalismo. Veem-se, atualmente, inúmeros contos e romances que criticam, combatem o capitalismo. Mas, há duas maneiras de o fazer:
1. Como revolucionário, que se atira para a frente.
2. Como reacionário, que quer voltar ao passado; é muitas vezes esta forma que se encontra nos romances modernos: tem-se saudades dos tempos de outrora.
d) Uma vez que obtivemos tudo isso, podemos, então, procurar a ideologia, isto é, ver quais são as ideias, os sentimentos, qual é a maneira de pensar do autor.
Ao procurar a ideologia, pensaremos no papel que desempenha, a sua influência no espírito das pessoas que leem o livro.
e) Poderemos, então, chegar à conclusão da nossa análise, dizer por que tal conto ou romance foi escrito em tal momento. E denunciar ou louvar, conforme o caso, as suas intenções (muitas vezes inconscientes no autor).
Este método de análise só pode ser bom se nos lembrarmos, ao aplicá-lo, de tudo o que foi dito anteriormente. É preciso pensar que a dialética, se nos trás uma nova maneira de conceber as coisas, exige, também, a quem fala delas e as analisa, o seu perfeito conhecimento.
É-nos necessário, por conseguinte, agora que vimos em que consiste o nosso método, tentar, nos estudos, na nossa vida militante e pessoal, ver as coisas no seu movimento, na sua mudança, nas suas contradições e na sua significação histórica, e não no estado estático, imóvel, vê-las e estudá-las também sob todos os seus aspectos, não de uma maneira unilateral. Numa palavra, aplicar, em tudo e sempre, o espírito dialético.
VII. Necessidade da luta ideológica.
Sabemos melhor agora o que é o materialismo dialético, forma moderna do materialismo fundado por Marx e Engels e desenvolvido por Lenine. Servimo-nos, nesta obra, de textos de Marx e Engels, mas não podemos terminar estes cursos sem assinalar, particularmente, que a obra filosófica de Lenine é considerável. (85) E por
isso que se fala hoje de marxismo-leninismo.
Marxismo-leninismo e materialismo dialético estão indissoluvelmente unidos, e só o conhecimento do materialismo dialético permite medir toda a extensão, todo o alcance, toda a riqueza do marxismo-leninismo.
Isso leva-nos a dizer que o militante só está verdadeiramente armado ideologicamente se conhecer o conjunto desta doutrina.
A burguesia, que compreendeu bem isso, esforça-se por introduzir, lançando mão de todos os meios, a sua própria ideologia na consciência dos trabalhadores. Sabendo perfeitamente que, de todos os aspectos do marxismo-leninismo, é o materialismo dialético o menos conhecido atualmente, a burguesia organizou contra ele a conspiração do silencio. É penoso constatar que o ensino oficial ignore tal método, e continue a ensinar-se, nas escolas e universidades, da mesma maneira que há cem anos.
Se, antigamente, o método metafísico dominou o dialético, era, vimo-lo, por causa da ignorância dos homens. Hoje, a ciência deu-nos os meios para demonstrar que o método dialético é o que convém aplicar às pesquisas científicas, e é escandaloso que se continue a ensinar aos nossos filhos, a pensar, a estudar com o método proveniente da ignorância.
Se os sábios, nas suas investigações científicas, já não podem estudar, na sua especialidade, sem ter em conta a interpretação das ciências, aplicando, por tal motivo e inconscientemente, uma parte da dialética, nelas empregam muitas vezes a formação de espírito que lhes foi dada, e que é a de um espírito metafísico. Que
progressos os grandes sábios, que deram já grandes coisas à humanidade - pensamos em Pasteur, Branly, que eram idealistas, crentes -, não teriam realizado, ou permitido realizar, se tivessem tido uma formação dialética!
Mas, existe uma forma de luta contra o marxismo-leninismo ainda mais perigosa do que esta campanha de silêncio: são as falsificações que a burguesia tenta organizar, mesmo no interior do movimento operário.
Vemos, neste momento, aparecer numerosos “teóricos”, que se apresentam como “marxistas” e pretendem “renovar”, “rejuvenescer” o marxismo. As campanhas deste gênero escolhem muitas vezes como ponto de apoio os aspectos do marxismo que são menos conhecidos, e, muito particularmente, a filosofia materialista.
Assim, por exemplo, há pessoas que declaram aceitar o marxismo no que respeita à concepção da ação revolucionária, mas não no que se refere à concepção geral do mundo. Declaram que se pode ser perfeitamente marxista sem aceitar a filosofia materialista. De acordo com esta atitude geral, desenvolvem-se diversas tentativas de contrabando. Pessoas que se dizem sempre marxistas querem introduzir, no marxismo, concepções que são incompatíveis com a sua própria base, isto é, com a filosofia materialista. Houve tentativas deste gênero no passado. É contra elas que Lenine escreveu o seu livro “Materialismo e empiriocriticismo”. Assiste-se atualmente, num período de larga difusão do marxismo, ao reaparecimento e multiplicação dessas tentativas. Como reconhecer, desmascarar as que, precisamente, atacam o marxismo no seu aspecto filosófico, e se ignorar a verdadeira filosofia do marxismo?
VIII. Conclusão.
Felizmente, observa-se desde há alguns anos, na classe operária, em particular, um formidável entusiasmo pelo estudo do conjunto do marxismo e um interesse crescente precisamente pelo estudo da filosofia materialista. Isso é um sinal que indica, na situação atual, que a classe operária sentiu perfeitamente a exatidão das razões que demos, no princípio, a favor do estudo da filosofia materialista. Os trabalhadores
aprenderam, pela sua própria experiência, a necessidade de ligar a prática à teoria e, ao mesmo tempo, a de levar o estudo teórico tão longe quanto possível. A tarefa de cada militante deve consistir em reforçar esta corrente, e dar-lhe uma direção e um conteúdo justos. Estamos contentes por ver que, graças à Universidade Operária de Paris, vários milhares de homens aprenderam o que é o materialismo dialético, e, se isso ilustra, de uma maneira impressionante, a nossa luta contra a burguesia, mostrando de que lado está a ciência, indica-nos também o nosso dever. É preciso estudar. É preciso conhecer e fazer conhecer o marxismo em todos os meios. Paralelamente à luta na rua e no local de trabalho, os militantes devem conduzir a luta
ideológica. O seu dever é defender a nossa ideologia contra todas as formas de ataque, e, ao mesmo tempo, conduzir a contraofensiva pela destruição da ideologia burguesa na consciência dos trabalhadores. Mas, para dominar todos os aspectos desta luta, é preciso estar armado. O militante só o estará verdadeiramente pelo
conhecimento do materialismo dialético. Tentar edificar uma sociedade sem classes, em que nada impeça o desenvolvimento das ciências, eis uma parte essencial do nosso dever.

solonsantos@yahoo.com.br - Ligeira formatação do apanhado filosófico de Valdir Pereira Duarte – 1958-2015 - doutor em Antropologia Social pela Universidade Nacional Argentina (2012) - graduado em Filosofia (1980) e Especialista em Educação Popular (1993) pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas/UNC (2001). Orientador educacional na Associação de Estudos Orientação e Assistência Rural - ASSESOAR - PR. Experiente na área de Sociologia e Educação com ênfase no mundo agrário, Epistemologia, Economia Política, Filosofia da Educação e Metodologia de processos sócio-organizativos, integrante com atuação do Centro de Educação Popular da ASSESOAR - Francisco Beltrão – PR.