Morte em universidade americana

 

Os jornais noticiaram, ontem, o drama de um jovem estudante sul-coreano que havia eliminado 32 pessoas entre professores e alunos, na universidade Virginia Tech, em Blacksburg (USA), e ferido mais de uma dezena, antes de se matar. Os comentaristas brasileiros e Estadunidenses lamentavam o ocorrido, enquanto tentavam explicar o que teria se passado com o jovem estudante. A quase totalidade dos comentários nos Estados Unidos referia-se à causa das mortes ao desequilíbrio mental do jovem estudante.

 

Segundo os comentaristas, o jovem tinha problemas de relacionamento e, por isso, deveria ter sido encaminhado para tratamento psiquiátrico. Em outras palavras, a causa da chacina poderia ser encontrada próxima ao indivíduo, era um problema pessoal.

 

Mas, são casos isolados mesmos, ou eles se repetem com certa frequência na sociedade estadunidense? Em um bilhete deixado pelo estudante, ele criticava o comportamento das pessoas com quem convivia, chamando-os de ‘’charlatães, enganadores, libertinos’’, e outras críticas às atitudes dos ‘’garotos ricos’’!

 

Segundo James Alan Fox, professor de direito criminal da Universidade Oriental de Boston, o caso do estudante não é um fato isolado. Desde 1966, quando Charles Whitman matou 13 pessoas, na Universidade do Texas, já foram registrados mais de 20 casos por ano, com pelo menos 4 vitimas, em média. Lembremo-nos de Columbine (1999) quando dois adolescentes estadunidenses, brancos, assassinaram 12 colegas e um professor na escola secundária daquela cidade, antes de se matarem. A partir deste fato, o cineasta estadunidense Michael Moore realizou o filme Tiros em Columbine, denunciando a degeneração e a veneração do armamentismo que prolifera em sua sociedade gerando assassinatos em massa como o ocorrido segunda-feira.  

 

Nadine Kaslow, professora de Psicologia da Escola Emory de Medicina, disse em entrevista: ‘’temos uma cultura de violência aqui nos EUA’’, e acrescentou que a violência escolar nos EUA é muito maior, pois abrange também as humilhações quotidianas, as agressões menos graves e a violência sexual. Os massacres seriam apenas a forma mais visível do fenômeno. ‘’Somos bombardeados pelas imagens violentas da nossa cultura“.

 

As estatísticas relativas aos crimes comuns, aos suicídios, por armas de fogo, são assustadoras. Segundo o Centro de Controle de Enfermidades dos Estados Unidos, nos 5 anos passados até 2004, mais de 148 mil pessoas foram mortas por armas de fogo, sendo 14,5 mil menores de idade. Em um ano morreram 29,6 mil pessoas por armas de fogo, o que na média equivale a 1 pessoa a cada 18 minutos. Relata a organização Brady Campaign to Prevent Gun Violence, com base em cálculos de informação oficial.

 

Quanto à vingança do estudante sul-coreano, nota-se que ela não foi seletiva, não visou uma pessoa determinada, uma categoria profissional, um grupo racial, ou de gênero. Na realidade, ele culpa a sociedade estadunidense que é, como sabemos, competitiva,  classista, preconceituosa e baseada na exploração do homem pelo homem. (‘’Vocês me levaram a fazer isso’’, diz, em outro trecho do bilhete, o estudante)!  

 

Tão logo a polícia divulgou a notícia de que se tratava de um jovem asiático, o autor dos disparos, os jornais imediatamente saíram com manchetes afirmando que o assassino era um estudante chinês. Ao fazer isto, a Imprensa quebrou o compromisso com a moral e o bom jornalismo, pois fizera afirmações sem comprovação real, o que só reafirma o preconceito que os estadunidenses nutrem contra a população chinesa que vive naquele país (não só contra os amarelos, mas, também, contra os latinos que eles  chamam de chicanos).

 

Entendemos que quando ocorrem casos generalizados, ou com certa frequência, de violência, as causas do fenômeno devem ser procuradas, pesquisadas na sociedade mais ampla, e não responsabilizando as pessoas individualmente, como se elas  fossem refratárias às influências, aos condicionamentos do meio social em que vivem. Há alguns estudos a respeito da sociedade estadunidense explicando como ela se estrutura, como articula suas diferentes instâncias, como se desenvolve e como entra em contradição. Quais são seus valores e como eles se refletem no comportamento de seus cidadãos.  

 

Os valores mais gerais daquela sociedade são, na realidade, os mesmos de qualquer sociedade capitalista. Pode ocorrer, porém, que haja, em uma determinada sociedade capitalista, um valor de maior expressão, de maior ênfase para sua população. Essa diferenciação de preponderância valorativa depende, ao que parece, do nível de desenvolvimento de cada sociedade; suas particularidades históricas, como por exemplo, um maior peso para valores religiosos, de castas, de costume tribal etc.

 

No caso da sociedade estadunidense, o valor máximo é o sucesso, este entendido como valor econômico, ou expressão artística, esportiva, científica e política. Quem não alcançar o sucesso, será apenas mais um número entre a mediocridade, o anonimato vexatório. Este tipo de sociedade, ao incentivar adultos e crianças a serem os melhores entre os demais, acaba por estabelecer uma competição de vida ou morte entre seus cidadãos. Pior, ainda, ela não só incentiva, mas cobra incessantemente o sucesso de pais e alunos, punindo os perdedores, na forma do desemprego e limitando seu acesso à seguridade social. O sucesso assim colocado representa sempre uma oportunidade para poucos e derrota dos demais.

 

Quais são os símbolos do valor ‘’sucesso’’? Vejamos o depoimento de uma mãe brasileira que teve um filho morto na tragédia da universidade Virgínia Tech. Disse ela: “tirei meu filho de uma faculdade da Flórida e o matriculei na Virgínia Tech por ser esta mais famosa”. Então, sucesso é frequentar a melhor universidade, o hotel cinco estrela, é ser correntista preferencial, viajar de primeira classe, passar pela sala ‘‘vip’’ do aeroporto, é ter o carro do ano, de preferência o modelo mais caro, é contar com tv a cabo, morar em condomínio fechado, usar terno Armani e gravata da Soteby etc.

 

Como sabemos que são esses os valores do sucesso? É fácil, basta assistir aos filmes provenientes dos Estados Unidos. Veja, por exemplo, a série Smallville, às 18:00 h, no canal Warner. Nesta série, podemos observar a competição entre alunos colegiais, seus sonhos, a esperança  de conseguir bolsa de estudo para a universidade. As disputas na quadra de basquete para ser o melhor e assim ser recomendado como bolsista, pois, como diz a música, meu canudo de papel: mas, a faculdade é particular, particular, ela é particular...! E, ao mesmo tempo, a frustração daqueles que lamentam jamais poder sair de sua pequena vila (Smallville). Esses são os derrotados que reproduzirão, em sua cidade, a tragédia social de seus antepassados.

 

Outro aspecto que podemos observar na série Smallville diz respeito à alienação do povo estadunidense. Os temas tratados nessa série, por exemplo, dizem respeito a coisas absurdas, todas de caráter metafísico ou de fatores extraterrestres improváveis, para não dizer delirantes. A alienação, hoje, na sociedade estadunidense, atingiu o clímax, pois o sistema capitalista já se completou, cumpriu todas as etapas de seu desenvolvimento, e, agora, muda ou apodrece, isto é, degenera, que é outra forma de mudança. Mas, como todo fenômeno que se realiza plenamente, torna-se difícil para a população apreender suas determinações. Daí, a perplexidade de seus cidadãos que reagem de maneira as mais diversas ante suas realidades sociais concretas.

 

Merton, um estudioso estadunidense, propôs, tempos atrás, uma tipologia para enquadrar os diversos comportamentos divergentes, observados por ele em seu país. Ele parte do pressuposto de que a sociedade estadunidense plasma em seus cidadãos o valor do sucesso, mas não lhes dá os meios legais para alcançá-los, surgindo, daí, uma contradição entre o desejável, legal e moralmente, e os meios sociais, concretos, para sua realização. Nos Estados Unidos, a competição é tão grande que quando uma pessoa consegue ascender a um cargo que lhe é gratificante, ela, geralmente, atribui à sorte o fato de tê-lo conseguido.  A contradição entre o desejável e o possível, naquele país, se refletirá na forma de conflito pessoal, exteriorizado, segundo o autor, nos comportamentos, abaixo tipificados:

 

a) rebaixamento: se não for possível a uma pessoa realizar o sonho de ser médico, por exemplo, ele rebaixará, então, seu grau de aspiração e lutará para ser, pelos menos, enfermeiro. Naturalmente, o rebaixamento do grau de aspiração requer dessa pessoa todo um ajustamento psicológico, se não quiser viver amargamente; b) quebrando as regras: isto é, uma pessoa que almeja acima de tudo o sucesso, mas percebendo que não o alcançará por meios legais, termina por trilhar caminhos alternativos tidos, porém, como ilegais. São pessoas que fraudam o fisco, que constituem organizações criminosas e terminam, apesar disso, alcançando o sucesso; c) retraimento alternativo: um grupo propõe criar formas alternativas de vida social dentro do próprio sistema capitalista, a exemplo da comunidade hippie dos anos sessenta; d) escapismo: neste caso, pessoas que não tendo coragem de quebrar as regras do jogo e impossibilitadas de alcançar o sucesso, terminam por buscar formas de escapismo de suas realidades sociais, pela adoção de vícios como o alcoolismo e as drogas; e) o revoltado, isto é, pessoas que não podendo alcançar o sucesso passam a ter uma ação social de revolta, combatendo a sociedade, mas de maneira individual e desnorteada. Se, porém, a sociedade abre-lhe uma oportunidade, imediatamente cessa sua revolta. É a personificação típica da raposa e as uvas, na fábula de Esopo; f) o revolucionário: pessoa que almeja o sucesso, mas percebendo que a sociedade capitalista não lhe proporcionará a realização de tal objetivo, propõe, então, a mudança deste tipo de sociedade. Para tanto, terá que, primeiro, entendê-la; segundo, formular ou aceitar teoricamente uma proposta de sociedade alternativa que estabeleça igualdade de oportunidade para todos.

 

Cada ator social assumiria um dos comportamentos divergentes acima, de acordo com sua procedência social, de classe, geográfica, cultural, religiosa, étnica, familiar, levada em conta ainda a experiência pessoal de cada um. Tal hipótese, embora razoável, necessitaria, contudo, ser comprovada, ou por meio de estudos de caso, ou por observação estatística. Sabemos, entretanto, que as contradições internas às realidades da pessoa humana ou da Natureza somente se manifestam quando suscitadas de fora, quando em processos de interação com os vários fenômenos circundantes, quer na Natureza, quer na sociedade. Dito de outra forma, realidades sociais no âmbito da universidade Virgínia Tech motivaram o afloramento de tensões internas à personalidade do estudante sul-coreano e que acabaram por levá-lo a a cometer o ato extremo da chacina.

 

Nota-se, pela leitura dos jornais, que o estudante não tinha amigos, ninguém o procurava, ninguém o convidava para festas ou reuniões. Sentia-se rejeitado pelas moças da universidade, e quando tentava uma aproximação, elas o afastavam, chegando, inclusive, a acusá-lo de assédio sexual. Aqui, talvez, a procedência étnica do estudante teria contribuído para a exteriorização de sua vingança (sentiu-se rejeitado por ser diferente,  feio, talvez, para os padrões da beleza ocidental? E, neste caso, poderia o sapo namorar o cisne, ainda que ambos vivam no mesmo lago?).

 

As políticas de Estado, naquele país, apontam para uma realidade classista, conforme noticias extraídas do jornal Hora do Povo. Segundo o Jornal, trata-se de uma sociedade onde os recursos públicos são principalmente carreados para alimentar a indústria bélica e as agressões a outros povos, usando as armas produzidas por ela a custo de bilhões de dólares. Enquanto isso, o já exíguo atendimento social (apoio à moradia, educação e saúde pública) é violentamente cortado pelo governo. Sociedade em que predomina uma ideologia individualista para justificar o desamparo a que são relegados os cidadãos - veja-se o dramático exemplo do abandono da população do berço do jazz, Nova Orleans, após o desastre provocado pelo furacão Katrina.

 

Outro fato já mencionado no filme ‘’Tiros em Columbine’’, de Michael Moore, é a facilidade de aquisição de armas de fogo, chegando ao absurdo, conforme mostra o filme, de algumas promoções, tais como: ‘’abra uma conta no banco x e ganhe um fuzil’’. Em entrevista, no filme acima, o ator Charlton Heston (Os Dez Mandamentos, Ben-Hur etc.) que, aliás, era presidente, na época, da sociedade do Rifle, além de defender o livre comércio de armas, explica que o fascínio por elas vem dos pioneiros.

 

Claro que esta é uma explicação simplista. O complexo industrial-militar, nos Estados Unidos, é poderoso, responsável por grande parte da geração do PIB. O orçamento militar, atualmente, corresponde a cerca de metade do orçamento militar do mundo inteiro (200 países). A indústria bélica emprega cerca de quatro milhões de pessoas, e a economia do país não se movimenta se não contar com sua contribuição. Aliás, a guerra permanente do imperialismo estadunidense é uma necessidade real e cruel para manter a hegemonia militar e econômica no mundo; para sustentar seu padrão de vida, garantindo os fluxos de insumos energéticos, matérias-primas e mais-valia provenientes, principalmente, dos países menos desenvolvidos. A guerra permanente serve, também, como pretexto para legitimar governos com baixa avaliação de desempenho pelo seu eleitoral local.

 

Cenário como este só pode levar à banalização da violência, em todas as suas modalidades. E está, aí, o exemplo de Cho, o estudante sul-coreano, para comprová-lo. Cabe aos estadunidenses o verso trágico que selaria o destino dos amantes de Ílion, e causa mais próxima das calamidades que afligiam Tróia: Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem, nas gerações porvindouras, os cantos excelsos dos vates.

 

                           

solonsantos@yahoo.com.br – notassocialistas.com.br - Ligeiras notas - 18/04/2007